O rock and roll na União Soviética
O rock and roll surgiu nos Estados Unidos nos anos 50. Certo, eu sei que vocês sabem disso. Né? É. Mas o rock se espalhou pelo mundo. Veio parar aqui em Terra Brazilis, inclusive. Nos anos 60, o Brasil era um país-papagaio em termos roqueiros: Os americanos arrotavam um hit, ele ganhava versão brasileira – e nem era da Álamo. Tomem como exemplo a música Rosegarden, da cantora Lynn Anderson. Aqui fizeram uma versão (Boa até), interpretada pelo The Fevers. Sabem, aquela assim “…eu não te prometi um mar de rosas…”. Na verdade, nem era só com os americanos. Na época da invasão britânica, o Robertão tava a cara do John Lennon, imaginem. Renato e Seus Blue Caps fizeram uma versão de uma música dos Beatles, chamada Ana. Quiserem ver, podem procurar.
Pois bem. Mas isso tudo aí não é o meu tema aqui. É só procês verem como o rock adentrou os países-satélite e aliados dos Estados Unidos com bastante facilidade e aceitação. Só que o rock é uma força viva, é um bicho duro na queda, que inclusive vem resistindo bravamente a muitos atentados terríveis. Esse bicho conseguiu invadir o inimigo número um dos Estados Unidos. O centro do comunismo, o segundo poder em um mundo dividido em dois: A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Essa é uma ode à força do rock and roll. Você aí, moleque criado com leite e pêra, empinando pipa no tapete da sala e que tem todos os CDs e DVDs que quer, presta atenção. Você, que gosta genuinamente de rock e trabalha pra comprar as coisas das bandas que tu gosta, presta atenção também. Conheçam uma outra realidade, um outro tempo, e reflitam.
Desde muito, muito tempo atrás até 1989, só tinha UMA gravadora na URSS, a Melodia. Sim, um monopólio. E claro, como cês podem imaginar, um monopólio debaixo dos olhos do governo soviético. Tudo que saía de lá tinha quer ser ideologicamente correto.
Como o rock fazia muito sucesso no mundo, ele era visto como algo muito ruim pelos oficiais soviéticos. Como efeito colateral, um grande movimento jovem surgiu; ou melhor, vários movimentos, vários grupos – metaleiros, hippies, punks, enfim. O grande problema é que quase nenhum disco de rock ou mesmo música pop era lançado na URSS.
Desde a metade dos anos 70, quando algumas bandas começaram a aparecer por lá, as “regras” pro lançamento de discos foram um pouco afrouxadas. A primeira banda permitida na URSS foram os Beatles – em artigos do começo dos anos 70 eles eram descritos como jovens vindos da classe operária, na melhor tradição do proletariado. A música disco europeia também era permitida, como o ABBA.
Os lançamentos da Melodia da metade pra frente dos anos 70 podem ser contados facilmente, foram poucos ainda. Alguns foram coleções de músicas dançantes, algumas de Nat King Cole e depois do Elvis, e também alguns discos the best of de outros artistas. Nessa última categoria fulguram os Bee Gees, com uns três ou quatro singles lançados, além de um LP.
Uma das tradições da indústria musical soviética era a “cópia oficial”, ou seja, republicação do trabalho de artistas sem permissão nenhuma. Fizeram isso com os Beatles e os Rolling Stones. Um disco dos Beatles inclusive não tinha o nome deles na capa. Só dizia, traduzindo, “Grupo Vocal-Instrumental, Inglaterra”. Inclusive “Grupo Vocal-Instrumental” era o termo substituto pra “Banda de rock”.
Entre 1983/84, a Melodia assinou contratos com a EMI e a Polydor pra lançar alguns discos. Saiu Imagine do John Lennon, uma versão que é raridade hoje. Depois disso, discos originais dos Beatles foram lançados. Nessa época, um episódio curioso aconteceu: Tudo estava certo para o lançamento na União Soviética de The Wall, do Pink Floyd. Acontece que o Roger Waters mencionou o nome de Leonid Brezhnev, Secretário Geral do Partido Comunista, na mesma frase que o de um grande inimigo soviético. Nisso, as matrizes do The Wall foram destruídas e o Pink Floyd, proibido.
Nos anos 80, a Melodia lançava algo novo todo ano, mas só uns 10 álbuns valiam à pena. Em 1986, foi lançado um álbum que fez muito sucesso, uma pérola e hoje uma raridade da parca indústria fonográfica soviética: Love Over Gold, do Dire Straits.
Havia um paradoxo na União Soviética: A indústria fonográfica lançava poucos discos por ano e enquanto isso o número de ouvintes de rock só aumentava. Isso parece estranho, mas era por conta de um outro aspecto – bem curioso, por sinal – da indústria musical soviética. Lá havia a chamada “cultura do magnetofone“. “Magnetofone”, em russo “Magnitofon”, era um gravador de fitas cassete. Tudo começava com as pessoas que podiam sair do país traziam LPs do exterior. Esses discos eram copiados pra fitas, as “primeiras cópias”, na gíria. Então, essas primeiras cópias eram distribuídas entre as pessoas, que faziam novas cópias e assim por diante. Os centros dessa árvore de fitas gravadas eram os “estúdios de gravação”, provavelmente as organizações mais estranhas e fascinantes que existiram na música. Oficialmente, esses estúdios eram autorizados a distribuir (Por uma certa quantia, claro) só a música aceita pelas autoridades. Mas como nenhum artista lucrava com esse sistema e ninguém era pago pelo uso das músicas, os catálogos dos estúdios estavam cheios de rock “ocidental”, além de algumas bandas soviéticas também. Esses estúdios não eram privados, mas pertenciam ao conselho da cidade. Logo, isso ilustra uma prática interessante da URSS: As coisas proibidas eram distribuídas por aqueles que as proibiam. Claro que, do ponto de vista das leis de direitos autorais, esses estúdios eram completas violações, mas o povo não tinha escolha.
É preciso mencionar, apesar de ser meio óbvio, que lá pelas terceiras cópias a qualidade já era bem baixa. Mas valia a pena em um país onde não se podia simplesmente sair, ir na loja e comprar o que bem se quisesse.
Anos 80, tempo de mudanças na União Soviética. Vocês sabem, aula de história: Perestroika, Glasnost e tal. Alguma coisa tinha mudado na área musical também. Uma grande vitória foi que o rock já não era assim tão mal visto, nem associado com capitalismo, fascismo, nem nada assim. Aliás, durante um bom tempo o termo “punk” era sinônimo de fascista na URSS. Claro, com essas mudanças, a Melodia tinha que fazer alguma coisa. Primeiro, fizeram uma bela coleção de 13 discos (Violando todas as leis de direitos autorais possíveis), chamada “Arquivo Pop”. Nessa coleção tinha Stevie Wonder, The Doors, Creedence, Rolling Stones, Deep Purple, Elvis e outros. Na mesma época Paul McCartney anunciou o lançamento de Back In The USSR na URSS (RÁ, ironia!). Junto com esses lançamentos também foi lançado o melhor do rock russo da época (Do qual falarei em um texto específico em breve).
Bem, isso tudo foi praticamente o último suspiro da Melodia. Em 1989/1990 seu monopólio acabou. Novas companhias independentes apareceram e começaram a produzir discos bem rápido. A primeira dessas empresas trabalhava só com bandas russas, mas sobreviveu por pouco tempo. Outras companhias vieram e eram lideradas por gente mais preparada comercialmente e voltadas pro rock estrangeiro.
Bem, a situação da indústria musical na União Soviética nunca foi “normal”. O governo não ajudava – censurava a música, desrespeitava os artistas e impedia as empresas de entrar no país. Hoje, 20 anos depois do fim da União Soviética, tudo isso parece bizarro. A ideia de viver em um país sem liberdades também, enquanto hoje os jovens a têm até demais.
Esse texto todo pode gerar pouco interesse na maioria de vocês, leitores. Mas fica aqui a ideia: Tomem conhecimento desses fatos e reflitam sobre o que vocês têm. Deixem de lado também a ignorância de achar que só é bom aquilo com o qual vocês estão familiarizados, até porquê em breve falarei sobre bandas de rock nativas da União Soviética. Não me perguntem porquê algo tão específico. Eu só conheci umas bandas de lá e elas, por incrível que lhes pareça, têm qualidade. Não deixem o desconhecido impedir que conheçam essas coisas.
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Obs: Esse texto não seria possível sem os relatos de Alexander Dekhtyar, que nasceu na União Soviética e mais tarde contou na internet como funcionava a indústria músical lá.
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