Como vai ser a produção cultural depois que a pandemia acabar?
Tem pouco mais de um ano desde que o SARS-CoV-2 foi devidamente descoberto e classificado, e cerca de um ano que a doença COVID-19 foi primeiro identificada… Lá no final de 2019 a gente jamais imaginaria que o próximo ano seria tomado por uma pandemia global, com milhões de infectados e outros tantos milhões de mortes, pra não falar na quase que completa ignorância que realmente temos em relação ao próprio vírus, à doença e, mais importante que isso, quais são e serão realmente as consequências desta coisa toda… Mas vamos deixar isso de lado um pouco. Vamos falar de quando a pandemia realmente acabar.
Estou escrevendo estas linhas dia 26 de dezembro de 2020: Natal passou cabisbaixo, desanimado… Chances são que a virada para 2021 será entre os dois extremos, de gente em casa sem muito o que fazer e gente em festas clandestinas… 2020 foi o ano em que estar com pessoas era, literalmente, um ato contra a lei, contra o bom senso, contra a sociedade… Sim, temos documentários e notícias e brigas e propagandas, mas não temos realmente uma produção midiática sobre a coisa: Filmes, livros, séries, jogos… Feliz ou infelizmente, a pandemia (Ainda) não é tema de entretenimento. Ainda estamos vivendo este período, não temos sequer razão para ficcionalizar a coisa toda, mas ainda vamos ter. Talvez leve mais um ano, talvez mais cinco, talvez outros trinta, mas fato é que, eventualmente, a pandemia de COVID-19 será história e, portanto, será também cenário. E no que tange este cenário, tem umas paradas que eu quero ver:
Doenças e pandemias MUITO mais realistas
Pandemic, Plague Inc. (Que, aliás, tá fazendo um ótimo trabalho em monetizar a pandemia), Bio Inc. – Biomedical Plague, Operation: Eradicate, Global Outbreak e pra não falar na infinidade de jogos de apocalipses zumbis são todos baseados na mesma ideia: Uma doença qualquer surgiu e devastou o mundo. Às vezes você controla a doença e às vezes tem que sobreviver à ela nestes jogos, mas fato é que cê tem que lidar com a transmissão, sintomas, consequências, recursos… E todos estes jogos são totalmente baseado no “e se?”. Bem, depois do COVID eles não precisam mais ser: Temos, literalmente, todos os tipos de estudos epidemiológicos possíveis como base para retratar esse cenário.
Pense, por exemplo, num livro qualquer sobre sobre o fim do mundo, no qual enormes ratos mutantes tomam cada cidade, vilarejo e metrópole existente, e os poucos sobreviventes se escondem, ironicamente, nos esgotos para sobreviver… Agora a gente SABE como uma doença dessas se espalha. A gente SABE o ritmo de transmissão e de mortes. A gente SABE como a parada aconteceria. Não tem mais espaço pra ciência superficial nas narrativas, a gente tem ciência de verdade falhando a cada etapa do processo e as consequências disso. A nossa imaginação vai ter que fazer MUITO melhor.
Melhor representação de coordenação internacional
Relações são coisas complicadas. Já é difícil entre um indivíduo e outro, entre nações então, completamente diferentes entre si, a parada é infinitamente mais difícil. Graças à pandemia a gente também tem experiência no quesito cooperação… Porque sejamos sinceros, uma coisa é reunir meia dúzia de países numa guerra, outra coisa é unir dezenas deles, em várias frentes – transportes, logística, recursos, comércio, população, pesquisa, informações – contra algo em comum, e o ponto chave aqui é “algo”: Não outro país, não uma ameaça de guerra, não um teste de míssil, mas sim um problema em comum (Que não pode ser resolvido na base da explosão), de igual ameaça à todos.
Além disso, graças aos momentos político-econômicos de alguns países (Dentre eles o Brasil), temos ainda os dois lados do exemplo: De países que se esforçam proativamente para tentar resolver o problema e de países que fazem merda. A piada do “nem os roteiristas poderiam escrever algo melhor que isso” é totalmente real: A gente tem, na prática, o exemplo de como as tantas nações do planeta se comportam frente à um problema conjunto, em todas as suas sutilezas, egoísmos, burrices, empatia e até mesmo concordando mesmo que de má vontade.
Um maior entendimento do que informação é e como ela é transmitida
Theirs not to make reply,
Theirs not to reason why,
Theirs but to do and die.
Into the valley of Death
Rode the six hundred.
A gente fala até que bastante da “Terceira Guerra Mundial”, e junto com isso sempre vem a conversa de quantas vezes alguém (Ou um grupo pequeno de pessoas) chegou perto de começar uma batalha ou guerra e acabou fazendo justamente o oposto. Informação, não é novidade alguma, é indispensável na vida… Nesses últimos anos, com as “fake news”, mais do que nunca temos a oportunidade tanto de vivenciar quanto de estudar como as informações são criadas, transmitidas, quais suas potencias e consequências e como exatamente elas podem afetar e afetam tanto quem diretamente se relaciona com elas quanto quem está o mais distante possível. Vivemos na chamada “era da informação”, mas à bem da verdade há milhares de anos já sabemos como utilizá-la para os mais variados fins… Só ficamos melhores nisso.
Consequentemente, é de se esperar que, no futuro não tão distante, a produção com a temática (Ou meta-temática, se você quiser) da informação seja muito mais presente. Já temos jogos que se passam totalmente num cenário de troca de mensagens de texto, já temos contos que dizem como computadores interpretam seres humanos, já temos filmes cuja história só acontece por falta de comunicação e definitivamente já temos propagandas muito mais bem pensadas, trabalhadas e produzidas para tirar o máximo de proveito dos seus poucos segundos no ar… Acredito que a gente ainda seja melhor criando e transmitindo informações que criando histórias com elas, mas não por muito tempo.
Medicina e saúde que fazem (Um pouco mais de) sentido
Você muito provavelmente já assistiu algum programa de TV sobre médicos. Seja uma série, seja um reality show fajuto, ou até mesmo os programas que mostram casos clínicos “reais”: 99% deles são uma merda. Simples assim. E isso se dá pelo fato de que, tantas e tantas vezes, a medicina e a saúde são chatas. Não tem emoção num braço quebrado ou num câncer de fígado. Os casos raríssimos com nomes complicados só são legais pra quem entende as dezenas de palavras específicas pra tratar do caso, o que significa que ou você já sabe o que tá acontecendo ou nem vale à pena prestar atenção. Bem, a gente literalmente tem uma PANDEMIA acontecendo DE VERDADE pra provar que saúde pode perfeitamente ser motivo de interesse.
Enquanto isso tem um lado muito ruim da espetacularização da morte e da tragédia, há um outro, talvez mais otimista da minha parte, que leva à conteúdo ficcional (Ou semi-ficcional) a ser mais realista, menos exagerado, mais observador… Em outras palavras, eu quero séries de TV nas quais os médicos todos se pegam mas que também mostre uma massagem cardíaca feita do jeito certo. Quero um reality show que diga os sintomas verdadeiros pra uma doença ao invés de misturar vários numa coisa só. E quero ter a satisfação de ver um debate de caso clínico que não termine na incrível conclusão que é “está curado, agora vamos esperar a pessoa piorar na próxima cena”. E sabe porque eu quero isso? Porque isso tudo é informação, e se o único exemplo de primeiros socorros que alguém tenha seja de um quadro de pegadinha na TV aberta, seria muito bom que esse exemplo seja minimamente preciso. Porque né, precisar usar a parada é uma possibilidade real.
Melhor compreensão do que é o fim do mundo
Pense nas representações de fim do mundo que cê conhece: Bombas atômicas, sem energia elétrica, cidades em ruínas, perda de tecnologia, pouca comida… O fim do mundo, na nossa imaginação, é o fim da sociedade ocidental. É não ter carros e postos de combustíveis, não ter supermercados abastecidos, não ter internet… Boa parte do mundo, pros nossos padrões, já vive no fim do mundo. E é bem capaz de estarem melhor que nós.
Não estou dizendo que a pandemia é o fim do mundo, longe disso, mas talvez seja sim. Talvez o fim do mundo seja uma Era de Aquário não idealizada, na qual problemas ainda existem, desentendimentos ainda acontecem, a vida continue mudando… Talvez o fim do mundo seja o fim de hábitos, de costumes, de tradições, simplesmente porque a vida, dalí pra frente, requer outras coisas, coisas diferentes. A gente já fala, há muitos meses, de como esse tempo de quarentena vai mudar algumas coisas para melhor: Vídeochamadas, trabalhar de casa, redução de poluição, valorização do tempo em família, etc… Se eu acredito que vai ser uma mudança tão radical assim? De jeito nenhum, muita coisa vai voltar (E muita já voltou) ao que era antes, mas talvez 2020 seja o fim do mundo e o começo de um novo… Talvez vejamos muitos mundos terminando no futuro.
E melhor compreensão do que significa “sobreviver”
Será que dá pra dizer que a gente está “sobrevivendo ao COVID”? Não sei… E nem digo pela quantidade de gente que morreu por conta da doença não, digo como sociedade mesmo… É fácil falar na “perda de valores”, olhar pra alguém na rua, pedindo ajuda, e pra outra pessoa a ignorando, e discursar sobre como a sociedade está ruindo, mas se o fim do mundo for o fim de uma época, a mudança (Às vezes natural, às vezes necessária) para novos formatos, ideias, pensamentos, atos… Sobreviver é o quê? É se adaptar? Um sobrevivente à pandemia é alguém que usa álcool em gel, máscara e fica o máximo possível em casa? É um pensamento interessante, se for compará-lo à ideia de sobrevivente tradicional: Alguém com fome, desgastado, cansado, traumatizado… Alguém sujo, que passou por uma infinidade de desafios, e termina parecendo um pobre coitado ao invés de um guerreiro triunfante. Sobrevivente, nas nossas histórias, é quem tem pulso, mesmo não tendo mais vontade de viver.
Bem, talvez seja muito bem hora de “sobrevivente” ser a palavra pra quem reconhece problemas e responda à eles com um mínimo de habilidade e, por que não, humildade. Talvez “sobrevivente” deva descrever quem se esforça para se relacionar da melhor forma possível com os outros, tendo plena consciência de que, às vezes, “a melhor forma possível” vai ser tanto algo ótimo para ambos quanto péssimo para ambos, e todas as variações desse meio. Talvez “sobrevivente” seja quem tenha educação, no sentido prático mesmo, de estudo, formal ou informal, e tenha capacidade para diferenciar entre informação útil e inútil, real e falsa, perigosa e inofensiva. Talvez “sobrevivente” seja quem saiba que saúde é mais que só não ter uma dor e um sintoma, saiba que saúde é psicológica, emocional, social, econômica, e saiba que estar saudável é muito mais difícil do que parece. Talvez, só talvez, sobreviver seja saber que tantas vezes o fim é só o fim mesmo, e nada pode ser feito, mas também saber que, às vezes, o fim é só uma parte do caminho.
O mundo pós Coronavírus
Estranho né? Dizer isso enquanto 2020 ainda não terminou, a pandemia continua acontecendo, a gente não sabe nem metade das consequências da coisa toda e o mundo sequer se acostumou com a situação toda. Porque tem isso: Estamos num estado de “fazer o melhor que dá”, não de readaptação. Só dá pra falar que a coisa toda passou quando a coisa toda passar, não enquanto a gente se vira pra ter uma normalidade falsa. Porque é isso que o “novo normal” é: Uma cópia do normal, feita às pressas e adaptada para uma situação terrível. Mas né, este texto inteiro é uma possibilidade de futuro, talvez até uma esperança de futuro, então por que não falar em “mundo pós pandemia”?
Pois bem, o mundo pós pandemia é, pra mim, um mundo ligeramente mais devagar no fluxo de gente e bem mais rápido no fluxo de informações. É um mundo com menos carros e mais aviões, porque ir ter experiências é mais importante do que a rotina. É um mundo com mais investimento em comunicação e em hospitais, e ainda menos investimentos em relações de ações preventivas de saúde. O mundo pós pandemia, pra mim, é um mundo mais preocupado com soluções rápidas e eficientes e menos preocupado com programas à longo prazo.
Nesse mundo, os filmes, livros, séries, jogos e programas de TV são aqueles que mostram pessoas se esforçando pelas outras, buscando “conexões reais”, valorizando a convivência, investindo em seres humanos… O entretenimento é aquele que busca retratar a felicidade, enquanto a produção cultural crítica, irônica, de protesto, é aquela que explicita as várias formas, muito mais avançadas e presentes, de controle de informações, uso de dados, concentração de recursos e domínio de recursos. No futuro pós pandemia, acredito que estaremos consumindo mais e em nome de uma maior proximidade dos outros. Acredito que estaremos passando mais tempo com pessoas que nos importam, mas que grande parte desse tempo vai ser falando sobre qualquer outra coisa que não pessoas. Acredito que o mundo pós pandemia vai ser um mundo mais realista, mais atento aos seus problemas, mais proativo em resolvê-los, mais disposto a se ajudar, e ainda assim, que vai ser um mundo mais idealista, que buscará soluções que não podem ser postas em prática, que irá debater ideais e não ações e que devotará mais energia em imaginar suas próprias capacidades futuras que colocar em prática as fundações necessárias para torná-las realidade.
Se este texto parece aquele meme do cara levantando, fechando as cortinas da janela pro mundo acontecendo lá fora, e sentando na frente do computador, é porque é mesmo: Do lado de fora a pandemia continua acontecendo, e a verdade é que eu não faço ideia de como o mundo vai ser no futuro. E ao mesmo tempo que metade de mim deseja estar certa, a outra metade deseja estar errada, porque independente do que a gente possa querer, construir, desejar, planejar, projetar e tornar realidade, a certeza é que o mundo vai continuar acontecendo, e continuar surpreendendo.
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