As Maiores Parcerias do Cinema
Volta e meia volta a tona aquela velha discussão: Afinal, um filme trata-se de uma realização coletiva ou do triunfo da visão pessoal do diretor sobre todas as dificuldades impostas pela industria cinematográfica? Não considerando o fato de todos sabermos que o resultado final é decidido por executivos sentados numa mesa analisando os números de uma apresentação em slides, claro. Mas a coisa fica mais interessante quando a produção não é resultado de apenas de um realizador, ou vários anônimos. São momentos mágicos, quando duas pessoas diferenciadas se envolvem no mesmo projeto e resistem ao impulso de se matarem até o fim da produção. E mais, descobrem que podem continuar trabalhando juntos outras vezes. É aí que nascem as grandes parcerias do cinema. E antes de mais nada, não, eu não tou falando de Johnny Depp e Tim Burton.
Charlie Kaufman e Spike Jonze
O trabalho da dupla mais recente da lista começou lá em 1999, com o grande Quero Ser John Malkovich. O primeiro material pro cinema do Charlie Kaufman já colocava ele na lista de roteiristas mais criativos da atualidade (Não que a concorrência seja lá muito grande), mas também indicava que ele poderia esbarrar em certas dificuldades. Pelo menos eu acho que a ideia de filmar um portal pra dentro da cabeça do John Malkovich tenha preocupado alguns produtores, na época. Mas felizmente, o universo acerta uma de vez em quando e o trabalho caiu nas mãos do também estreante Spike Jonze.
E incrivelmente, o estilo do cara casou perfeitamente com o roteiro do Kaufman. Talvez porque a experiência dele como diretor de videoclipes o tenha preparado pra contar uma história com bastante elementos em um tempo limitado, como no Sabotage, do Beastie Boys. Ou simplesmente por ele ter trabalhado com a Björk, isso deve preparar a pessoa pra algumas coisas. A próxima colaboração dos dois foi no Adaptação, que levou toda a carga de metalinguagem, mistura de ficção com realidade e mindfucks afins pra um novo nível, com o mesmo sucesso.
Só que por enquanto, o trabalho conjunto dos dois termina aí. Mas se torna mais significativo ao analisarmos a sequencia da carreira dos dois. Nem tanto do Spike Jonze, que fez o sensacional Onde Vivem os Monstros. Já o Kaufman conseguiu manter o nível no Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças, do Michel Gondry. Porém, na primeira tentativa como diretor, a coisa não deu tão certo assim. O Sinédoque, Nova York se perdeu no conceito de filme dentro do filme dentro do filme dentro do filmCHEGA. Ou seja, ficou provado que ele precisa de alguém que entenda melhor a linguagem cinematográfica ou algo assim pra direcionar toda essa criatividade. E até agora, ninguém fez isso melhor que o Spike Jonze. Só que enquanto isso não acontece, parece que o Kaufman vai continuar a afundar na espiral de estranheza e genialidade com o seu novo filme, Frank or Francis, para o bem e para o mal.
Alfred Hitchcock e James Stewart
O James Stewart pode ser primeiramente identificado com os filmes do Frank Capra (Principalmente o A Felicidade Não Se Compra), interpretando um cidadão comum, trabalhador, de bom coração e tudo o mais. E é exatamente por isso a parceria com o Hitchcock deu tão certo. O diretor soube aproveitar perfeitamente essas qualidades, colocando o americano médio ideal nas situações-limite características dos thrillers dele, dando uma profundidade muito maior à mesma atuação do Stewart. Que resultou em alguns dos filmes mais icônicos do Hitchcock , como o Festim Diabólico, O Homem Que Sabia Demais e o Um Corpo Que Cai. Que aliás, foi um fracasso de bilheteria e encerrou a parceria dos dois pra sempre, vai entender.
Ingmar Bergman e Liv Ullmann
Esses merecem estar na lista porque além de trabalharem juntos em 10 filmes, tiveram uma filha, e mesmo depois do fim da relação continuaram colaborando em projetos, olha que limdo. Brinks, não é isso. O que chama a atenção é que, nos filmes extremamente intimistas do Bergman, a atriz conseguiu capturar exatamente a essência dos papéis. Pelo menos é a impressão que fica na tela. E isso é uma conquista e tanto, visto que aqui sim, as obras aparentam ser realizações pessoais, o que indica que os dois teriam que compartilhar uma visão de mundo muito próxima pras coisas funcionarem como funcionaram. Principalmente no Persona, A Hora do Lobo e no filmaço que é o Sonata de Outono.
John Ford e John Wayne
Eis os dois maiores ícones do cinema norte-americano. Logo, o destino deles não podia deixar de convergir, pra praticamente criar o western como o conhecemos. E mesmo não sendo lá um grande ator, o John Wayne virou John Wayne porque o Ford soube como explorá-lo corretamente durante TODA a carreira dele, desde o No Tempo das Diligências até o marco que foi o O Homem que Matou o Facínora. Durante todo esse período da construção do mito do ator, o diretor viveu uma relação de amor e ódio com o Wayne, por horas constatando que ele não sabia atuar, noutras dizendo que ele era o melhor ator de Hollywood precisamente pelo mesmo motivo. Já fora das telas, os dois se respeitavam tanto que, tendo visões políticas contrárias, se recusavam sequer a discutir o assunto pra evitar brigas.
John Huston e Humphrey Bogart
Se a dupla Ford e Wayne é a representação máxima da Hollywood clássica, o John Huston e o Humphrey Bogart simbolizam o outro lado do período, entre conflitos, problemas de produção e a eterna luta contra os estúdios. O Bogart entra nesse esquema mais com a imagem, já que qualquer filme com o ator costumava dar lucro, e ele normalmente chegava nos sets a tempo, apesar de beber até de manhã. Mas o John Huston sempre se recusou a ceder às vontades dos produtores, insistindo especialmente filmar em locações, ao contrario do que costumava ser feito. E foi justamente a saída dos estúdios que garantiu aos filmes dele uma autenticidade muito maior do que o restante grandes produções dos anos 40 e 50.
Mas o que se destaca é a impressão de que nenhum dos dois parecia se levar a sério, apesar de claramente considerarem o filme a coisa mais importante do mundo. Ou melhor, como o próprio Huston apontaria nas características do Bogart, eles levavam toda a ideia de “estrelas” com uma boa dose de cinismo. Provavelmente essa foi uma das características que levou a parceria funcionar tão bem, desde de o clássico noir Relíquia Macabra até O Tesouro de Sierra Madre e o Uma Aventura na África. Que aliás, foi o filme que originou aquela velha lenda de que durante a produção na África, todos os envolvidos ficaram doentes, exceto Huston e Bogart, que passaram os dias a base de uísque.
Martin Scorsese e Robert De Niro
E pra fechar essa pequena odisseia por Hollywood, vamos aos anos 70. Dentre os novos cineastas que surgiram de fora do sistema dos estúdios por esse período, um dos mais promissores era o Martin Scorsese. E no primeiro filme relevante dele, Caminhos Perigosos, quem se destacava já era o Robert De Niro. Mas o ápice da parceria dos dois veio no Taxi Driver, onde o ator conseguiu inserir no personagem todo o deslocamento e solidão dos desajustados que foram engolidos pela revolução cultural da época, como era o caso do roteirista Paul Schrader e do próprio Scorsese.
Mas a coisa não parou por aí. Anos depois, quando o diretor já era famoso foi parar no hospital por editar o New York, New York a base de cocaína e não queria fazer mais nada, o De Niro incessantemente insistiu para que ele o dirigisse o Touro Indomável. E a parceria sobreviveu até os anos 80, gerando ainda O Rei da Comédia, o que já é prova que pode sobreviver a qualquer coisa.
Akira Kurosawa e Toshiro Mifune
A parceria entre o maior ator e o maior diretor do Japão talvez seja a mais prolífica, já que os dois colaboraram em 16 filmes, quase todos excelentes. Aliás, excelência, esse é o termo. Nos seus grandes momentos, o Kurosawa atingiu a perfeição em todos os aspectos, então nada mais lógico que o elenco corresponder a esse padrão. E o Toshiro Mifune conseguiu. Pra começar, dá pra diferenciar ele facilmente do resto dos japoneses, o que já é uma grande coisa. E isso acontece principalmente pela intensidade da atuação. Que chama ainda mais atenção em contraste com o estilo contemplativo do Kurosawa. Ao mesmo tempo, ele consegue capturar as pequenas nuances de cada papel, seja um policial inexperiente, um executivo poderoso, ou os vários samurais renegados que basicamente o transformaram no Clint Eastwood antes do Clint Eastwood.
Sergio Leone e Ennio Morricone
Mesmo falando no Homem Sem Nome, é hora de sair um pouco dessa dinâmica ator-diretor. Porque os responsáveis pelas maiores combinações entre áudio e vídeo da história da humanidade são apenas dois italianos. Que apesar de começarem a trabalhar juntos em 1964, já tinham sido colegas na escola, olha só. Mas enfim, o que acontece aqui é que os dois utilizam de técnicas diferentes pra expressar exatamente a mesma coisa, o que fez com que levassem o western pra um nível totalmente novo. A trilha do Ennio Morricone só reforça o poder dos closes e planos abertos do Sergio Leone, sendo inacreditavelmente apropriada em cada um dos filmes dele. A coisa chega no ápice no Era Uma Vez no Oeste, onde cada personagem principal tem sua trilha, que se mistura com as outras conforme eles se encontram. Mas a provável melhor cena de todo o cinema vem da colaboração anterior dos dois, o Três Homens em Conflito:
Werner Herzog e Klaus Kinski
A parceria entre o Werner Herzog e o Klaus Kinski é tão espetacular nas telas como na vida real. E nem poderia ser diferente, se tratando de duas das personalidades mais interessantes do cinema. E contrastantes, já que o Kinski sempre foi conhecido pelo temperamento e tudo o mais, enquanto o Herzog nunca deve ter levantado a voz na vida. A relação dos dois começou quando eles dividiram uma casa, em Munique. Tudo ia muito bem, até que o ator se trancou no banheiro e quebrou todos os moveis em pedacinhos durante um surto de raiva que durou 48 horas. O que não deve ter causado uma impressão muito grande no Herzog, já que ele chamou o Kinski pra atuar no Aguirre, a Cólera dos Deuses uns anos depois.
Nessa época, Kinski vinha encarnando Jesus numa peça de teatro por algum tempo, o que logicamente fez com que ele passasse a acreditar que realmente era Jesus Cristo. O que também não ajudou muito na produção, já que o ator já era um tanto quanto egocêntrico antes disso. Mas, mesmo que o Herzog ainda não soubesse, era essencial para que ele capturasse perfeitamente toda a força esmagadora da natureza sob o homem que ele buscava em meio a Amazônia. Só que o período não foi tão divertido pro Kinski, que depois de inúmeras discussões sobre as condições de vida durante a produção, ameaçou deixar o filme. Ao que o diretor calmamente respondeu que, se ele tentasse sair, ele pegaria o rifle e atiraria 8 vezes quando Kinski passasse pela curva do rio, e depois viraria a arma para a própria cabeça. Pra se ter uma ideia do tom da frase, o próprio Kinski levou a sério.
E essa dinâmica se manteve pelos próximos quatro filmes em que eles colaboraram, com o Herzog sempre dando um jeito de conseguir o máximo do ator, seja aguentando horas de gritos pra uma atuação contida ao final do dia, no Aguirre, ou se aproveitando da exaustão do Kinski após a produção do Nosferatu pra capturar toda a tensão acumulada no Woyzeck.
Mas isso não é nada pra o único cineasta que fez um filme em cada continente (E tem pretensão de filmar no espaço), salvou o ator Joaquin Phoenix de um carro em chamas, comeu o próprio sapato depois de perder uma aposta e alega ter andado 500 milhas de Munique até Paris. O que nos leva a pensar, porque diabos ainda não tem ninguém andando com uma câmera atrás dele o tempo todo?
De qualquer forma, podemos avaliar o quão profundas foram as marcas deixadas pela relação com o Kinski ao acompanharmos o momento em que o o diretor leva um tiro de um sniper durante uma entrevista. Adianto apenas que ele continua andando normalmente, após constatar, em seu inglês característico, que it was not a significant bullet.
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