Três acordes
Um dos maiores clichês do rock and roll é alguém falar que “Ramones é só três acordes”. Eu, como fã da banda, já ouvi incontáveis vezes essa frase e ainda vou ouvir muito, tenho certeza. O caso é que, diferente de muitos fãs, eu não fico bravo, nem exatamente tento desmentir; o máximo que faço é explicar algumas coisas. Talvez o “crítico” em questão não tenha culpa de ser tão raso, talvez ele esteja só falando por que não gosta da banda – o que é perfeitamente compreensível – ou só queira aparecer. De qualquer maneira, talvez tendo alguns fatos em mente essa pessoa se saia melhor em discussões sobre música. Só é preciso um pouco de paciência e ouvir (Ou ler), afinal, como dizia minha avó, “conhecimento não ocupa espaço”.
Pelo básico: Um acorde são, em termos muito simples, notas musicais sendo harmonicamente tocadas juntas por um instrumento musical. Existe uma infinidade de acordes que podem ser tocados no instrumento que aqui nos interessa, a guitarra, mas apenas uma pequena quantidade deles são mais freqüentemente usados, por que são realmente… Básicos, a dizer: C (Dó), D (Ré), E (Mi), F (Fá), G (Sol), A (Lá) e B (Si), além das versões maiores e menores deles, e também os acordes sustenidos, bemóis, em quinta, enfim. Eles formam todas as músicas dos Ramones, como as de muitas, muitas bandas.
Então, quando alguém diz que Ramones só tem três desses acordes, é pra passar uma idéia ofensiva de pobreza, ou no mínimo de simplicidade. E é verdade. Aliás, não só isso, é proposital. Johnny Ramone, o guitarrista responsável por tudo isso, e que leva nas costas todas as críticas, disse que na formação da banda, como não sabia tocar muito bem e julgando que levaria anos de treinamento árduo pra ser como seus ídolos do rock, resolveu tocar só o que sabia. Sim, isso gerou uma banda praticamente sem solos – como muitos também falam -, mas também criou um estilo peculiar, uma “parede de som”, se preferirem. Johnny fazia acordes básicos, muitas vezes em quinta (Ainda mais fáceis), mas fazia isso rápido e com uma precisão absurda. O resultado, então, é um som ininterrupto (Pela rapidez na troca de acordes) e sujo (Por conta da distorção e/ou da guitarra vagabunda, não sei bem dizer). Qualquer um que toca guitarra ou teve quatorze anos sabe como é cansativo mover o punho rápido e sem parar por mais de uma hora. Não, não é exagero: Fazer base assim cansa, e muito.
Se você leu até aqui, parabéns, eu não esperava que muita gente fosse. Por esse motivo você vai tomar conhecimento de um argumento muito bom pra usar nas rodas de discussão com seus amigos e recalcados em geral (E seus amigos que também sejam recalcados – aliás, você precisa melhorar essas amizades), e que é motivo desse artigo. Seguinte: Os Ramones se formaram em 1974. Três deles se conheceram no que seria para nós o ensino médio, por volta de 1967. Isso os deixava à beira da maioridade naquela época, e ao formar a banda já estavam ou passavam dos vinte anos. O que eu quero dizer com isso é que todos os membros fundadores nasceram e cresceram praticamente na mesma época, entre os anos 50 e 60. Por exemplo, Joey e Dee Dee, respectivamente o vocalista e o baixista, nasceram em 1951 (fazendo a ressalva que Dee Dee nasceu nos EUA mas se mudou com a família para Berlin, na Alemanha, só voltando com quinze anos, quando conheceu os outros); Tommy, em 1952 (Na Hungria, mas cresceu nos EUA); Johnny, mais velho, em 1948. O que eles viram e, mais importante, o que ouviram nessa época marcou suas vidas. Os Ramones, a primeira banda chamada de “punk” e tão diferente dos quase majoritariamente horríveis grupos surgidos mais tarde nesse gênero, é filha dos anos 60. Refinando isso, a banda nasceu da música popular americana da época, que todos os membros fundadores cresceram ouvindo. E, advinhem, qualquer um que ouvisse com atenção essa música americana dos anos 60 (Rock incluso) ia notar um padrão: Muitas eram simples, com três, quatro acordes como base, além de terem letras do mesmo jeito, até inocentes, uma característica que os Ramones também iriam adquirir. A época da técnica infinita, das letras profundas e da dificuldade ainda não tinha acontecido totalmente, estava só começando. Os Ramones pegaram a simplicidade já existente, tiraram tudo que ainda poderia ter de mais sofisticado (Incluindo as pausas entre os acordes) e transformaram isso em estilo próprio, quase por acidente; eles quiseram ser simples, mas não sabiam a importância futura disso. E é só.
Let’s Dance, penúltima faixa do primeiro disco dos Ramones, é um single que se tornou hit em 1962, na voz de Chris Montez, cantor popular americano. Sunfin’ Bird, do segundo disco, é cover do hit de 1963 do The Trashmen. California Sun, do terceiro, é cover de uma música creditada a Henry Glover (Não o ator) e Morris Levy, gravada por um artista pequeno de Nova Orleãs, Joe Jones, e que teve a versão mais conhecida (Depois da dos Ramones) gravada em 1964 por The Rivieras, e também virou hit naquele ano. Needles and Pins, do quarto album, é cover de uma antiga música gravada por vários artistas e que foi hit em 1963, por The Searchers. Baby, I Love You, uma música com violinos ao fundo, que soa estranha até no estranho álbum de 1980, End Of The Century, não é assim por acaso; também é um cover de uma música pop de 1963, de um trio feminino chamado The Ronnetes. Os Ramones nunca esqueceram os anos 60, aquela década nunca saiu deles. A simplicidade que aprenderam com essas músicas, a rapidez e a distorção de guitarra na qual embrulharam elas, iria não só fazer toda a sua carreira, iria fazer o punk. E assim, um estilo musical que, à exceção dos Ramones, ficou marcado por rebeldia e delinqüencia, é em parte resultado de músicas antigas, oldies, como chamam em inglês, que muitos “punks” pisariam em cima sem o menor pudor.
Como exemplos, acho que os acima são suficientes. Claro, não são tudo. Ainda tem músicas como Palisades Park, cover de uma música de 1962 e Spider Man (Cover do tema do desenho dos anos 60), e até um disco todo de covers de músicas daquela década, o Acid Eaters, de 1993. Nele tem coisas como Have You Ever Seen The Rain, do Creedence, When I Was Young, do Animals e Somebody To Love, do Jefferson Airplane, pra citar as mais conhecidas.
Se Ramones “é só três acordes”, o mesmo se aplica pra grande parte da música dos anos 60. Aliás, se o problema é a simplicidade, muita gente tem problemas, desde Johnny Cash até a Jovem Guarda, indo até os Beatles. Aliás, as primeiras músicas desses últimos tinham quase todas “três acordes”. E pros que resistem em ser recalcados, digo pra não falarem só da guitarra. Falem do baixo também, que geralmente acompanhava, falem da bateria, um eterno 4×4. Mas se fizerem isso perto de mim ou de qualquer outro fã minimamente esperto, também vão ter que falar de muitas, muitas bandas e artistas, incluindo muitos que vocês mesmo gostam; vão ter que falar mal da história do rock e da música. É bom estarem preparados.
Pois bem, é claro que o assunto das influências dos Ramones é mais amplo que o que foi dito nesse texto hoje; ainda precisamos falar do outro lado da banda, do que mais contribuiu para eles terem sido o que foram. Mas isso fica pra outra vez. Enfim. Só sei que três acordes nunca foram problema pro rock, assim como uma nota só nunca foi problema pro samba, se é que vocês me entendem, heh. Vida longa e próspera.
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