Cinquenta tons mais a fundo

Livros segunda-feira, 04 de março de 2013

Pleno 2013 e ainda estamos aí, numa sociedade sexista, controladora, homofóbica, xenofóbica, transfóbica e extremamente sutil. É, esse sistema em que a gente vive, pra se manter, precisa passar seus ideais pra frente, por mais imbecis que os mesmos sejam.

Não vou falar que jogar videogame te transforma numa pessoa violenta. Nem que Yu-Gi-Oh é coisa do demônio. Tô falando de um buraco bem mais baixo. Especificamente, quero falar de dois livros voltados pro público jovem que se passam por feministas e libertadores.

Tudo começa com uma garota que possa se aproximar da realidade de todas as leitoras. Uma protagonista tão genérica quanto possível. Se, por mágica, ela saísse do papel, tanto a menina mais popular da escola quanto a nerd da primeira fila poderiam ser suas amigas. Ela é estabanada, avoada e charmosa por causa disso. A falta de direção da personagem e seus defeitos serão elevados a qualidades.

A história se alimenta da insegurança dos que lêem, afinal, toda adolescente já sonhou em ter seus infinitos OH SÃO TANTOS defeitos completamente esquecidos. Em ser tão perfeita que até seus piores traços sejam, no fundo, um charminho. Só que as garotas que liam Crepúsculo cresceram. Querem ter liberdade, mostrar que viraram mulheres. Passaram então a ler Cinquenta Tons De Cinza.

Vocês podem achar exagero. Os dois livros têm uma péssima narrativa e um desfecho de dar nó no intestino. Perfeitos pra usar no cu quando falta papel higiênico. Vocês podem achar também que é babaquice existirem vampiros purpurinados, ou que amarrar os outros na cama durante o rala-rola seja esquisito. E é justamente aí que vive o problema. As pessoas se focam somente na história. Ninguém pensa nas mensagens passadas.

Tanto a já famosa Bella Swan quanto Anastacia Steele são reflexos de séculos de opressão sexual. Assim como Edward Cullen e Christian Grey ilustram séculos de clichês e estereótipos. Ambas as meninas são tratadas como objeto sexual, como se não tivessem vontade própria. Ambas têm a vida regulada pelo parceiro. Quando “desobedecem”, são punidas. Sim, galera. Além de duas bichonas enrustidas que tentam seriamente compensar o tamanho do pau, eles são abusadores.

Ainda tá confuso? Vou exemplificar meu argumento a partir de Crepúsculo. Li os quatro livros e, portanto, tenho cacife o suficiente pra falar do assunto.

Bella é uma menina comum. Ela tem amigos na escola, pais legais, nunca passou fome nem nada disso. Um dia, ela conhece Edward e se apaixona instantaneamente. Apesar de rejeitada no início, descobrimos mais pro final que ele já observava cada passo da menina. Até as horas de sono: À noite, Edward invade o quarto de Bella e some na manhã seguinte, antes que o pai da garota perceba. De repente, ele a salva de um atropelamento, os pombinhos formam um casal e a garota é obrigada então a centrar sua vida no namorado. O querido começa a ditar como quer que ela coma, se comporte, (Não) dirija e peide.

Ele força tanto a própria presença até o ponto em que cada pensamento de Bella esteja voltado pro umbiguinho brilhante e torneado. Além disso, ele também lê as mentes sujas de cada rapaz que, na sua cabecinha doentia, seja uma “ameaça” pro relacionamento. E não importa onde ela vá, ele vai saber. Seja por que ele lê mentes, por que tem uma audição sobre-humana ou por que tem uma irmã vidente.

E depois de tanta baboseira, ele também estabelece quando os dois devem se tocar ou não, por que, afinal, está a todo o momento “se controlando pra não matá-la”, já que cheiro dela é tão irresistível. Aliás, é por causa desse cheiro que todas as merdas da saga acontecem. Por causa dele que a Bella sempre é perseguida, ferida e afins. Cês conhecem o clássico Foi estuprada? Ah, mas também, né, saiu com aquela roupa tão curta…”?

Quando o Edward se enche de repetidamente salvar a vida da Bella, vai embora. Leva consigo as fotos em casal, os presentes dados na época do namoro e qualquer outro resquício da relação que os dois tiveram. Isolada dos outros, a menina simplesmente se perde, entra em depressão. Ela não tem personalidade, não tem um centro gravitacional pra se prender. Bella chega ao ponto de arriscar a própria vida apenas pra ver uma miragem do ex. Ela é uma mulher submissa, tem o “seu lugar” e só vai viver quando estiver nele. E, se deu algo errado, é por que ela fez o que não devia.

 Alegoria pra violência doméstica: Ela apanhou e perdoou.

Em 50 Tons de Cinza, a coisa não é tão diferente assim. Contrariando os princípios de respeito e cuidado que uma relação saudável de BDSM exige, Anastasia é controlada completamente por Christian. Mesmo fora do sexo. Quem já leu o livro, lembra do absurdo que foi a cena onde ele a obriga a tomar pílula por “não gostar de usar camisinha”. Quando ela se recusa a tal, ele grita e ameaça publicamente espancá-la. Ele afirma na frente de todos que é dono do corpo da garota. E tem gente que acha isso sexy.

Apesar de tudo, Anastasia se mantém confiante de que seu parceiro – Não pode ser chamado nem de namorado – é somente uma alma torturada. Sim, por que ser rico e bonito é um sofrimento sem tamanho, vejam bem. Ela acredita também que, com bastante persistência, vai curá-lo de todo o mal.

Sabe o que é isso? É a crença infantil de que o abusador pode ser curado se a vítima se esforçar. E se isso não acontecer, foi falta de perseverança. Victim’s Blame de novo, igual à mulher estuprada por estar de roupa curta ou ao término do relacionamento humano-vampiresco por que a menina tem um cheiro tão bom. Mas não temam, pois, no fim, ambos os romances são “justificados”. Eles fazem o que fazem por amor. Eles sustentam suas mulheres, as mimam, enchem de presentes. As compram.

O pior é ver esse tipo de relacionamento sendo aplaudido de pé. Como a Nelly já disse, o público pede por casais assim. As mulheres se identificam. Os homens se espelham. As crianças aprendem. Todos encontram justificativas pros maus-tratos. O ato vira natural. Mais uma estrutura inquebrável da sociedade.

 Sabia que 50 Tons era uma fanfiction de Crepúsculo?

E como se faz pra consertar isso? Vamos censurar os livros, os blogs de humor, as pessoas que produzem o conteúdo “errado”?

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~NAUM~~~~~~~~~~!!!1!111!!!ELEVEN!

Até por que, como eu já disse ali em cima, o problema não é a história. É como a mesma é contada. Se fosse em tom de crítica, seria uma boa lição ao invés de ser esse manual heterobrancocristão de comportamento.

O que afasta muita gente do lado correto do feminismo é o extremismo. Muitas mulheres que são realmente frustradas acham que a disputa vai ser resolvida revidando com o mesmo golpe. Não se usa opressão pra lutar contra opressão. O ideal é ir na conversa. É educar. Mostrar pros outros que o machismo faz mal pra todo mundo.

É só ver que os dois livros que analisei aqui, por exemplo, ensinam que homens devem ser violentos e fazer xixi nas namoradas pra marcar territórios. Que eles só terão valor quando forem ricos, bem sucedidos e estonteantemente lindos e com prisão de ventre no caso do Dudu. Que eles devem ser inteligentes e superiores, mas tudo bem se comportar como uma besta sanguinolenta se a presa passar de sainha. Foi ela que pediu, não foi?

Mesmo se mantendo aí, firme e forte, o machismo machuca e prejudica todo mundo. Homem, mulher, transexual, cachorro, periquito, papagaio. Enfim, rapaz, que texto grande. Espero que tenham lido até aqui e visto a situação com um olhar mais apurado. É preciso ter senso crítico na hora de ler ou assistir a algo. Pode parecer idiota, mas é a partir de coisinhas inofensivas como um romance adolescente que a alienação surge.

PS.: Pra você que se vira no inglês e quer mais informações sobre o assunto, acesse:

Twilight, Mormonism and Meyer – Laci Green
A Mormon Connection? – Joel Campbell
BDSM for beginners – SubsForDommes

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