O Físico (Noah Gordon)
O Físico, pra você que matava as aulas da sexta série, não é sobre um físico, mas sobre um médico medieval. Há uma certa discordância se realmente se usava o termo “físico” para os médicos na época ou se é só uma tradução de bosta do original, The Physician, mas ainda sim é um bom livro… Aliás, é um livro que eu recomendo que todo mundo leia.
O ano é 1021. Sim, século 11, mais de 300 anos antes da peste negra e das máscaras com bico. A Inglaterra é governada por reis dinamarqueses, Londres é ínfima parte do que viria a ser e é nesse mundo que vivem os Cole. Rob Jeremy é o mais velho entre seis irmãos, o pai é carpinteiro e a mãe costura para fora. Bem, encurtando a história, é uma vida difícil: A mãe morre, o pai morre pouco tempo depois e os filhos só não são largados graças à Corporação dos Carpinteiros de Londres, afinal, se eles não se cuidam entre si, o rei é que não fará. Com a morte dos pais, a Corporação arranja para que cada um dos filhos seja adotado, e Rob acaba sendo tomado como aprendiz de um barbeiro-cirurgião.
Ainda em relação às aulas da sexta série, na Europa da época era comum o barbeiro ser um amontoado de outras profissões, que nem foram os dentistas em outras épocas e lugares. Indo pras aulas da oitava série, dois exemplos são, respectivamente, o Barbeiro em Memórias de um Sargento de Milícias e o próprio Tiradentes. Mas então, na Europa do século 11 os barbeiros eram aqueles caras que viajavam por tudo que é lugar, fazendo shows de mágica, vendendo esgoto engarrafado e, com certa sorte, curando uma ou outra doença. Boa parte deles sequer era, de fato, barbeiro, e este é o caso aqui.
Quem “adotou” Rob J. foi Henry Croft, ou melhor Barber (Sim, criatividade pra dar e vender). Ele o ensinou os malabarismos, as histórias, como fazer o Específico Universal e várias outras coisas. O detalhe: Barber era um dos melhores no que fazia, tanto em relação ao espetáculo quanto à tratar os doentes. A questão é que a maioria simplesmente acabava matando os pacientes e, na época, os médicos eram piores que os barbeiros-cirurgiões, ao ponto de, na vida real e na história, a população os considerar feiticeiros e os matar, dos mais variados jeitos, por isso, quase uma prévia da Inquisição.
Aqui vem um dos motivos principais da história e um dos problemas do livro: Rob J. tem um dom, que é saber se a pessoa está bem ou se em pouco tempo irá morrer. Ao tocar alguém, ele consegue sentir a força vital de uma pessoa, e numa época em que a Igreja mandava, isso não é algo a se sair contando por aí. O problema é que, na história, esse dom é um dos grandes motivos por Rob querer se tornar médico, mas ao longo de todo o livro o dom não faz diferença alguma. Ele impressiona meia dúzia de pessoas ao falar que alguém vai morrer e a pessoa morrer mesmo, mas o grande motivador, o grande ponto de apoio da história e do personagem, praticamente não faz diferença nenhuma no livro. O livro chega a afirmar que há uma grande rede de comunicação entre pessoas com o mesmo dom, mas não sai disso.
Adiantando a história, Rob cresce, aprende tudo que seria possível com Barber, e quando este morre, Rob é seu único herdeiro. Ele continua como barbeiro-cirurgião até que se da conta de que não sabe porra nenhuma, e que a maioria das pessoas que trata morre do mesmo jeito. Até que, num belo dia, um médico judeu, Benjamim Merlin, ao ver que Rob não poderia fazer nada para curar um homem com catarata, se intromete e diz que, com uma cirurgia, pode curá-lo. Uma cirurgia ocular no século 11. É com esse médico que Rob descobre que, na Pérsia, pode estudar e vir a se tornar médico. Acontece que, na época, a Igreja Católica era dividia entre Ocidental, sediada em Roma, e Oriental, sediada em Constantinopla, e por ordem da Igreja Ocidental, um cristão não poderia ir estudar na Pérsia, que não só era pagã, mas estava sob o domínio da Igreja Oriental. E assim se cria o plano: Rob vai para a Pérsia estudar medicina com o maior médico do mundo, Abu Ali at-Husain ibn Abdullah ibn Sina, ou só Ibn Sina, pros mais chegados, e para isso Rob vai se passar por judeu.
Parágrafo à parte, o cara acima é o próprio Ibn Sina. Sim, ele realmente existiu, e você talvez o conheça por Avicena. Junto de Al-Juzjani, outro médico (E pupilo de Ibn Sina), são os dois únicos personagens do livro que realmente existiram, ainda que o livro não se baseie realmente em suas vidas.
Enfim, Rob vai para a Pérsia e basicamente o livro conta de sua infância até seu retorno para a Inglaterra. Não, isso não é spoiler: O livro é separado em partes, cada uma cuidando de uma parte da vida de Rob. Acreditem, é realmente difícil resumir a história desse livro: Tudo dito nos parágrafos anteriores aí foram apenas as primeiras 160 páginas, dum livro de 600. Não contarei mais, porque a história é legal (E tem tanta, tanta coisa…), mas não pensem que é o ponto forte do livro. O Físico ganhou outras duas continuações, ambas contando a história de sucessores da família de Rob J, sempre com alguma relação com a medicina, mas não precisa lê-los: O Físico é um livro fechado, e as continuações só ocorreram por causa do sucesso, principalmente na Europa, nos EUA foi bem fraco. Em 2013 foi feita uma adaptação alemã pro cinema, com o mesmo nome (Aqui e nas gringas), que conta inclusive com o Ben Kingsley e o Stellan Skarsgård no elenco. Não assisti, mas o filme está previsto para estrear aqui no Brasil dia 25 de setembro.
Já falei de relance, mas repito: A história não é grande coisa. Rob fica órfão, é adotado, aprende uma profissão, viaja pra Pérsia pra estudar medicina e, anos depois, volta pra Inglaterra. Não só o negócio do dom dele é subaproveitado essa palavra existe?, mas alguns personagens também, além de uma ou outra situação. Há momentos em que a narrativa pula partes importantes e outros em que se estende, não em momentos sem importância, mas que não faria grande diferença se fosse mais curto. E, de uma forma geral, o final do livro deixa à desejar: É um final meio corrido, um tanto abrupto, ainda que suave na história. Eu literalmente terminei o livro e só me dei conta quando já estava lendo a primeira linha dos agradecimentos do autor.
A pesquisa e, consequentemente, a ambientação do livro é realmente foda. Você não vai ter aquela conhecida sensação de que está lembro sobre tempos mortos e atrasados, habitados por um bando de retardados mentais, controlados pela religião e que se dobram à qualquer monarca. Todos estes elementos estão no livro: A religião, tanto a católica quanto a judia, são partes bem importantes da história, mas este definitivamente não é um livro que se lê como se fosse um “retrato de épocas passadas”: O Noah Gordon consegue contar sobre o século 11 de forma vívida, em que realmente havia pessoas vivendo, e não apenas retratos e arqueologia. O Físico é tão natural que às vezes você vai se esquecer que é uma história que se passa há mil anos.
Muito bom, mas nada disso é o motivo pelo qual você deve ler o livro. Através de seus erros e acertos, tanto na história quanto na narrativa, o Noah Gordon acaba por criar a melhor representação da trajetória de uma vida que eu já vi, dentre todas as mídias possíveis. O problema é que eu não sei se foi de propósito (O que seria incrível) ou não, mas estou mais inclinado à esta última, uma vez que fazer tal coisa propositadamente é digno de aplausos em pé, e em nenhum momento o livro se mostra mais do que é.
Ok, então por que você deve ler O Físico? Justamente por isso: Eu NUNCA vi obra nenhuma retratar de forma tão bem a vida de uma pessoa. Sabe quando, ao pensar sobre a própria trajetória e/ou a trajetória de alguém que conhecemos de perto conseguimos ver os momentos-chave, as pessoas importantes e fatos decisivos? E quando temos a sensação de que meses voam, mas alguns dias duram anos? E até mesmo quando pensamos nas pessoas que já fizeram parte das nossas vidas e já não fazem mais, seja porque morreram ou porque seguimos caminhos diferentes? O Físico é a história da vida do Rob J de modo que apenas se você estivesse ao lado dele poderia saber, e isso é algo que nunca vi acontecer numa história antes. Esta obra, de ficção, vale lembrar, é um retrato mais fiel, claro, definido e bem contado possível de uma vida humana (Nos vários significados da palavra). É melhor que toda e qualquer biografia (E mesmo autobiografia) que já conheci.
A grande pergunta é se o Noah Gordon fez o que fez com ou sem consciência do que fez. Se realmente fez, o que é extremamente difícil, esta é uma das melhores obras jamais criadas. Sim, eu falei isso mesmo, e estou pronto para defendê-la, mas admito que nunca imaginei que falaria tal coisa, ainda mais levando em conta o tipo de livro que este é: Quase nunca a máxima “não julgue um livro pela capa” se aplica, mas esta definitivamente é uma dessas exceções.
E ainda assim, é um daqueles fatídicos exemplos de “uma vez na vida e outra na morte”, porque se a mínima coisa fosse diferente do que é, o livro não daria certo. Um erro a menos ou um acerto a mais simplesmente acabariam com a obra. Sabe aquela frase de autoajuda, “são as imperfeições das pessoas que as tornam únicas”? Pois é. Enquanto a decisão de aplaudir o Noah Gordon ainda fica em aberto, eu aplaudo, sem medo algum, esta obra. Não sei quanto às continuações (E, ao menos num futuro próximo, não pretendo lê-las), mas O Físico definitivamente é um livro que você deve ler. Talvez até mais que os grandes nomes da literatura.
O Físico
The Physician
Ano de Edição: 1996
Autor: Noah Gordon
Número de Páginas: 592
Editora: Rocco
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