Manual da Rebeldia Juvenil
Já tem quase dez anos que sigo um pequeno ritual: Ir dormir quando o sol está nascendo. Não, não sempre, apenas quando estou na casa do meu pai. Começou como um pequeno gesto de rebeldia contra a disciplina materna, mas em alguns anos ficou claro que, assim como tantos, gosto de dormir tarde, e assim o ritual passou a ser mais uma extensão do que eu já fazia do que uma forma de bater o pé contra o totalitarismo familiar. E o que eu faço até as seis da matina? Assisto TV.
Pois é, eu sei que a primeira coisa que se pensa é na Emmanuelle, no fatídico Cine Privê, e, mais tarde, no Multishow e no Telecine Action, mas não, nada disso. Não que eu não visse tais programas, mas não durante o ritual: Só TV aberta, na programação da madrugada.
Algo que está desaparecendo aos poucos é a liberdade que se tem quando não se tem internet: Sem internet, você tem que fazer alguma outra coisa. Nada de smartphones ou pontos de wi-fi em tudo que é comércio, e tudo é mais complicado de se arranjar quando você é criança, o que impossibilitava a opção do “vou sair”. Então este era o cenário: Eu, me recusando a ir dormir, num apartamento, sem internet (Depois passou a ter, mas aí a coisa toda já estava organizada, então foda-se), sem poder fazer barulho, com todo mundo já dormindo.
Não sei se vocês já tiraram um dia de suas vidas pra ver como é a TV aberta de madrugada, mas já adianto que não é nada empolgante. Até “horários aceitáveis”, lá pela uma e meia, duas da matina, você vai ter algum programa “de verdade”, provavelmente algum talk show ou algum jornal, ou seja, aquele programa que a emissora tem só pra dizer que tem, mas que jamais vai passar num horário melhor. Daí pra frente é ladeira abaixo: Algumas preferem passar filmes, outras passam séries e algumas passam o Louvor de Nosso Abençoado Redentor Pai e Guia Jesus Cristo de Nazaré. Mas também tem as que passam só clips de música, (O que não é tão ruim assim – a qualidade musical é outra questão) e as que passam os leilões de joias, gado, tapetes, além de propagandas de iogurteiras e aparelhos de ginástica.
Por mais estranho que pareça, eu gosto de propagandas que querem me vender algo “se eu ligar AGORA”. Por que? Não sei, mas gosto, e talvez mais esquisito ainda seja gostar delas mas não suportar os leilões pela TV. Simplesmente não aguento. E é isso aí, eu gosto de ver a nova versão do grill com bandeja pra gordura ou a pochete que vibra ou qualquer coisa assim.
Eu também prefiro assistir séries à filmes, primeiro porque elas terminam rápido e segundo porque é legal esfregar na cara das menininhas que você conhece Sobrenatural há mais tempo que elas. E de que outro jeito você conheceria a série do Blade? Ou Kyle XY? Além, é claro, de ouvir a belíssima dublagem de Big Bang: A Teoria? Então as séries são o melhor pra se assistir na madrugada, já que os filmes estão dublados melhores, mas estão cortados, e ver o Braga Boys, o Chris Brown e a Mariah Carey em seguida é sacanagem. Não, a comunhão em Deus Todo Poderoso não entra sequer na lista.
Eu sei que falando assim parece uma madrugada completamente chata, deprimente e disperdiçada, mas depois da segunda ou terceira vez você acostuma. Claro que seria melhor se tivesse uma programação melhor, e, de preferência, completamente legendada, só que o ponto não é o que você está assistindo, mas o fato de estar assistindo: Ainda é um ritual estar lá, sem horário pra nada, e poder aproveitar aquelas poucas horas de silêncio e escuridão, só entre você, a TV e algum vizinho tolo, fraco e influenciável, que está batendo punheta pra uma cavalgada buceta-barriga (Em casas separadas).
Com o passar dos anos esse ritual perdeu força, ao menos para mim: Acontece que o 3G chegou pra ficar, a TV está em decadência e ninguém é criança para sempre. Cedo ou tarde você vai ter, efetivamente, o poder de escolha, e até uma noite pesquisando preço de puta é mais divertido que três episódios seguidos de Dois Homens e Meio. Mas deem uma chance aos clips, séries, filmes, propagandas, leilões e cultos. Se nada disso der certo, você ainda pode ficar acordado até um pouco depois e aprender uma profissão com o Telecurso: Pra mim esse era o momento de desligar a TV, escovar os dentes e dormir, ouvindo o rádio e vendo os raios de sol pela janela.
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