Rascunho

Livros segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Autores estalam os dedos, sentam em suas cadeiras, e escrevem, enquanto que do outro lado da rua, no outro prédio, há um salão de balé. Ou ballet. E da janela dos autores dá para ver as saias rosas e os saltos das alunas, que tanto incomodam a vizinha de baixo, que de máscara de beleza na cara se arma da vassoura e impunemente castiga o teto, esperando que os seus golpes derrotem a música que sai do gramofone restaurado do andar de cima. E os autores não olham para o mundo lá fora.

Só tem um, mas dá no mesmo: Nem alto nem baixo, magro, com um nariz grande e pontudo, debruçado sobre sua própria vida. Nas ruas os olham torto, já que parecem crupiês. A vizinha de baixo, com sua expressão de peixe morto e já de pele rejuvenescida sai de casa, de sacola na mão, para ir à feira. Talvez ela encontre um senhor de bons modos, quem sabe… Um cavalheiro que à leve à opera. Desde que não seja a porcaria que tocam no andar de cima.

E os crupiês escrevem, enquanto que o senhor de bons modos limpa as cinzas das lapelas e alisa o bigode, e sai correndo do boteco ao ver a senhora do prédio do fim da rua. Ora, ela deve ter sido muito bonita quando jovem. Do salão de balé não dá para ver a senhora e o senhor conversando, mas a professora ainda está na janela, olhando o caminho que a velha de baixo tinha acabado de percorrer, sonhando com a grande tragédia que pode ter amargurado a velha àquele ponto, esquecendo-se de que as alunas relaxam quando não supervisionadas sob olhares atentos e correções de postura. Mais um capítulo terminado; nova página.

Um tanto cordial esse senhor, uma pena ser baixinho… Mas é muito educado sim. E o caminho de volta da feira se alonga, os quarteirões dobrando de tamanho, a esquina sempre longe, mas a senhora do térreo nem sente o braço dormente por conta das sacolas, perdida em seus pensamentos e devaneios. O quitandeiro bem que achou estranho a dona não ter comprado melão hoje, mas da última vez que sugeriu algo à ela, o zé ruela tampinha soltou-lhe os cães, então que se estrepe. E que se estrepe a velha de baixo, que já está de volta com as compras, incluindo uma vassoura nova… Bem que estava silêncio demais.

Levantando-se, os autores estalam as costas, empurram de volta a cadeira e sem um olhar para trás sequer fazem uma pausa em seu trabalho. Hoje rendeu, não é sempre que rende. Doze capítulos, mais o anterior, que estava uma porcaria e foi reescrito. Enquanto a chaleira esquenta a água para o café, do outro lado da rua a aula de balé (Ou ballet) termina – uma decepção, mas vão melhorar – e uma por uma as garotas sentam no chão, tiram as sapatilhas, e massageando os pés algumas se perguntam qual grande graça suas mães veem naquilo. Os autores então coam o café e se dirigem para sua própria janela, pela primeira vez em muito tempo, e ignorando a senhora feia como briga de foice do prédio em frente, olham para o céu, por entre os telhados e suas antenas ornamentais. Nublado; vai chover, mas não hoje, amanhã cedo.

As alunas enfim estão liberadas, e uma por uma saem pela porta da frente. Só agora os autores reparam nelas, segurando a porta uma para as outras, andando em grupinhos ou em pares. “Não foi uma graça a aula hoje, querida?” parece dizer a mãe de uma delas, enquanto que as outras, não acompanhadas, caminham para casa ou para o ponto de ônibus. Quase esquecem o café os autores, e lembrando-se tomam um gole maior e mais quente do que esperavam, e a professora, na janela do outro lado da rua vê quando os crupiês derramam o café na roupa, e é bem feito por ficar olhando suas alunas daquele jeito.

Enfim tem paz a senhora do térreo. São uma graça com suas saias e colantes, mas por que têm de pular tanto? Estão dançando, não praticando para as olimpíadas. E lá está o tal dos escritores novamente, numa de suas raras aparições na janela… Eles bem que podiam largar essa vida de artista e arranjar um emprego (Parece ser boa gente), o cassino está contratando. Terminando o café, já que metade derramou, os autores voltam para sua tarefa, já enrolaram demais.

Enquanto o décimo terceiro capítulo começa a se desenhar, do outro lado da rua a professora já fechou o salão e, subindo para seu apartamento no andar de cima, tira as roupas e entra no banho. Foi um dia cansativo, sem dúvida, e as alunas estão bem atrasadas, mas isso é assunto para a próxima semana. A senhora do térreo já jantou e já está em sua camisola e debaixo das cobertas, apenas fazendo hora até a hora de dormir, recostada em sua cama, de livro nas mãos. Do outro lado da rua, os autores estão revisando o décimo sexto capítulo.

Um andar acima dos autores e felizmente dois acima da velha de baixo, a professora agora é senhorita, e mesmo não sendo jovem, ainda conserva um pouco de sua antiga forma, acentuada pelo pó de arroz, máscara de cílios e o indispensável batom. Está quase na hora de sair, e sua companhia deve chegar a qualquer momento. Nunca é bom estar pronta de cara, é melhor fazê-los esperar um pouco. A senhora do térreo já está ficando com sono, fechando os olhos de vez em quando, bocejando, e entre um ou outro cochilo sonha com o senhor charmoso. Um andar acima, do outro lado da rua, os autores enfim conseguiram terminar a revisão do décimo sexto capítulo… Não está muito bom, mas é melhor continuar escrevendo e ver no que dá.

O terno está alinhado, a gravata idem… Sapatos? Brilhando. Bafo? Melhor mais um drops. A campainha toca e, apressada, a senhorita também dá os últimos retoques em sua aparência antes de calçar as luvas, pegar a bolsa, apagar tudo e trancar a porta atrás de si, descendo esbaforida os quatro lances de escada antes de abrir a porta com seu sedutor sorriso, que só aumenta ao ver a reação do senhor baixinho que será seu acompanhante hoje. Ele oferece um cigarro e ela aceita, para depois abrir a porta do táxi para ela, enquanto indica o endereço da ópera para o motorista. A senhora do térreo não ouviu o carro arrancando porque já dormiu, os óculos tortos na ponta do nariz, a luz ainda acesa. Sonha com a orquestra tocando durante o clímax da história do livro, o vilão implorando para a mocinha ficar com ele, e não com o heroi… Muito bonito esse roteiro do tenor.

Sentado em sua cadeira, os autores só ouvem o barulho do carro e percebem a luz vindo do térreo do outro lado da rua, mas não vão até a janela. Ele sabe que em algumas horas o carro vai voltar e deixar a madame do segundo andar em casa, provavelmente acompanhada, e que em algum momento a senhora feia como briga de foice vai acordar com o próprio ronco e apagar a luz, voltando a dormir em seguida. Quanto à eles mesmos, os autores não tem curiosidade o suficiente para tirá-lo de seu trabalho, olhar para a própria camisa e ver a mancha de café; precisa terminar o capítulo, terminar o livro: O vilão sequestrou a mocinha, e desde o fim da parte um os leitores não o deixam em paz.

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