Sobre os programas de calouros
Tem dois tipos de programas de calouros. Caso você seja muito jovem e não saiba o que a expressão quer dizer, são aqueles programas (Ou, às vezes, apenas quadros dentro dum programa) de gente supostamente talentosa na cantoria. E tem dois tipos dele: Os que topam criar um um espetáculo em volta da parada e os que procuram mostrar a escalada para o sucesso.
Antes de tudo, um pequeno tópico ligeiramente à parte: Raul Gil é uma das poucas pessoas “da mídia” que eu posso dizer que respeito. Quero dizer, não gosto dos programas que ele já fez, não gosto do seu jeito de apresentar, discordo de várias das suas opiniões tanto em relação à TV quanto política e religião e, de uma forma geral, ele me parece aquele seu parente que, um belo dia, chega na tua casa num Santana 92 cor vinho e vai passar a próxima semana inteira como visita. Apesar disso tudo, é necessário admitir que não só ele tem uma carreira de sucesso e que, de forma geral, manteve-se fiel aos seus posicionamentos, como também foi o responsável por moldar boa parte do que hoje chama-se de “televisão brasileira”, além de suas contribuições no rádio e na música.
Dito isto, posso passar pro tema de verdade do texto: Em algum momento no tempo (Uma vez que não estou afim de perguntar ao pai Google) alguém notou que a música fazia sucesso como produto. Tempos depois surgiu uma parada muito loka: Uma caixa que mostrava o que tava acontecendo de verdade num lugar bem longe, em tempo real. E o resto é história. Mas foi apenas uma questão de tempo até botarem a música na TV, e não muito depois surgiu o tal formato em que não apenas artistas já firmados iam nos programas de TV, mas sim que a TV criava seus próprios músicos. The Monkees provavelmente é o maior exemplo dessa coisa toda, pegando carona na Beatlemania. O tempo, invariavelmente, passou e enfim chegamos ao centro das atenções de hoje: Um meio de pegar gente desconhecida e, através da TV, “dar” uma carreira musical pra quem se sair melhor.
É claro que no meio da história entra a coisa da votação do público ser uma mentira, do fato de que a maior parte dos participantes é pago para estar alí, de que as próprias músicas não são escolhidas por quem canta e que, às vezes, nem mesmo quem está cantando é realmente quem está cantando, todos os programas de calouros seguem a mesma base: Pegar alguém que supostamente canta bem, supostamente fazê-lo competir com outras pessoas que também supostamente cantam bem, e após vários supostos testes, provas e desafios, supostamente escolher o melhor. Supostamente tem sinônimo?
E como foi dito lá no começo, tem dois tipos de programas de calouros. O primeiro inclui coisas como o The Voice, The X Factor e Ídolos, e o segundo engloba os calouros do Raul Gil, do Chacrinha, do Silvio Santos e do Rodrigo Faro. De uma forma geral, a principal diferença é que enquanto os primeiros são programas propriamente ditos, com orçamentos dedicados à competição musical, os segundos são parte de um programa maior, logo, tem uma produção menor. Há ainda os shows de talentos, que acabam por englobar música também, mas que não se limitam à isso, então, por agora, ficam fora da jogada.
O primeiro tipo é uma superprodução. Simples assim. Como se o Faustão fosse dedicado inteiramente à um único quadro. O orçamento é gigante, a produção prévia à estreia do programa é gigante, há milhões e milhões de dinheiros envolvidos. Quando, nos estágios iniciais do programa, estes inevitavelmente mostrarão a briga que foi pros candidatos do estado, país ou até do mundo todo para tentarem competir (Algo muito parecido com o que rola com o bolo do aniversário de São Paulo todo ano), essa parte é real. Nego realmente se mata pra tentar entrar nesses programas, passando por diversas fases de avaliação e os caralhos.
Do outro lado há a produção pequena. Isso não quer dizer que não tenha gente se matando pra tentar ir cantar no programa do Silvio Santos pra tentar ganhar aviãozinho de dinheiro, mas sim que é um negócio restrito. Mais restrito ainda caso o programa não siga o estilo de pegar algumas pessoas diferentes e ver quem é o melhor, mas escolher um, como é o caso do programa do Faro, e fazer deste a estrela daquele programa específico. Claro que há trabalho da produção nisso, claro que é difícil achar gente que valha à pena mostrar na TV, mas é num nível completamente diferente.
A questão é que toda essa gente assina contrato. Não, não o prometido contrato de gravadora pra fazer um álbum, contrato: Cê vai receber por aparecer na TV, vai abrir mão dos seus direitos de imagem, não vai contar pra ninguém o que acontece no programa, não vai ter contato com ninguém “de fora” até o programa terminar, vai seguir o que for determinado pelos seus técnicos, pelo diretor, pelo apresentador, pelos produtores. Todo e qualquer um que chegue a botar o pé no palco e fazer um melisma babaca tem um contrato assinado. Isso além do que tem que seguir por fora, é claro. E de forma muito simples, tais obrigações são comparativas ao programa em questão: Quanto mais está em jogo pro programa e, consequentemente, pra quem trabalha nele, mais restrita é a coisa.
Em outras palavras, é mais fácil dar pra trás com o Silvio Santos do que com o Carlinhos Brown. Sério, pensa nisso.
O que me incomoda nessa história toda porém não é nada disso. Se você está disposto a matar a sua carreira como artista e ser juiz num troço desses, vai com fé. Se você realmente acha que participar dum negócio desse vai te trazer fama, sucesso e shows em estádios, também pode ir com força. Eu sinceramente não tenho problemas nenhum com gente se fodendo em troca de dinheiro e muito menos na busca por simpatia popular. Inclusive meu problema sequer é da produção industrial de música dispensável que sai desses negócios. Porque sejamos sinceros, a gente nunca vai ver uma orquestra se sujeitando à nada disso, até porque a maioria do público acha música erudita um saco, mas sim o que está em voga na época: Pop, punk, hip hop, rap, country, sertanejo, funk. Só aparece na TV o que já faz sucesso fora dela, mesmo que este seja modificado pra se encaixar com o resto da grade.
O que me incomoda nessa história é que, em algum momento dela, não é um acordo mútuo entre programa e participantes. A troca de interesses nessa situação é o que permite que o programa aconteça: A TV quer gente disposta a aparecer na TV fazendo um determinado papel, e tem gente que quer aparecer na TV por diversos motivos. O prêmio final pode ser um álbum gravado, dinheiro, um carro, tanto faz, isso é bônus, já que se o prêmio final fosse realmente a coisa mais importante em jogo a coisa toda não precisaria ser gravada e muito menos retransmitida pra milhões de pessoas (E o que é mais surpreendente é que são realmente milhões de pessoas). Isso é de boa, é como o mutualismo animal: Indispensável, mas todo mundo ganha.
Só que tem horas em que o bagulho vira canibalismo, ou, ainda pior, sinfilia. E não, isso não é o nome de fetiche, é uma relação de escravização. É quando um programa de TV se aproveita de alguém para conseguir o que quer. E eu sei que falando assim parece inocência da minha parte, e talvez seja mesmo, mas não deixa de ser um problema que eu, ou nós, o público, tem que abordar e lidar.
É aquela velha história de pegar gente que quer alguma coisa mas que não sabe se virar no mundo e usá-la como uma ferramenta descartável. Sempre aconteceu, sempre acontece e não vai mudar antes de todos nós estarmos mortos quando o Sol expandir e engolfar a Terra. Mas me deixa puto do mesmo jeito.
Tem milhões de pessoas no mundo que sonham com o sucesso, com fama, com reconhecimento e tudo mais que engloba o que se pode chamar de “músico de sucesso”. Claro que varia muito, uma vez que tem gente satisfeita em tocar em bares à noite e tem gente que quer fazer festival atrás de festival, tocando pra gente que só tá alí por causa da banda que vai vir em seguida. Não importa, o ponto é que essa gente toda quer “ser alguém” à partir da música. E isso é bom: A música é um mercado multibilionário em constante expansão, há diversos nichos a serem explorados, e muito simplesmente é impossível manter isso tudo (Ou ainda continuar expandindo) sem uma corrente constante de gente nova chegando a cada instante.
Só que, como já dizia a minha vó, tem os inteligentes, os espertos e os fodidos. Inteligência pode te levar longe mas pode também acabar te matando, esperteza te faz sobreviver e, quem sabe, triunfar, e fodido é sempre uma condição que pode surpreender as pessoas e te deixar num estado pior do que quando cê começou. De forma mais direta: Tem muito otário que sonha alto no mundo. E isso é o sonho de qualquer um com os meios e a falta de dignidade necessária pra fazer as coisas acontecerem.
Porque véi, uma coisa é cê topar participar dum programa onde cê venda sua alma pra gravadora na troca da esperança de alguém decidir que contratar um participante dum programa ruim pra gravar um álbum, a outra é pegar alguém que toca na esquina depois do trampo e dizer pra essa pessoa que ela pode ser famosa e rica pra caralho se for na TV. É cruel. E sou eu falando isso.
Porque a verdade é que, quando esse é o caso, essa gente nunca vai ganhar dinheiro. Nunca vai gravar CD, lançar DVD ao vivo, lotar show, participar de Virada Cultural, nem nada disso. Porque obviamente nunca foi o objetivo de quem promete isso tudo promover isso tudo. O objetivo é dar audiência, mesmo que cê tenha que pegar alguém e mijar no sonho dela. “Você vai voltar aqui no programa quando for lançar sua carreira” MEU CU, irmão. Não tem carreira. Aliás, nego é tão fodido que não tem dinheiro nem mesmo pra se embebedar ou se drogar. Eu me impressiono como essa gente tem até mesmo um violão pra tocar. Não é uma questão de estudo, raça ou classe social, mas sim de recursos: Se você tem recurso tem gente interessada em manter a parada assim, e não vai deixar outra pessoa meter a mão. Portanto o alvo é sempre no mais fácil, e o mais fácil é quem é burro o suficiente pra depositar confiança e incapaz de fazer algo quando tomar no cu.
É desnecessário. Tem gente disposta a fazer o papel que for, não há necessidade de enganar alguém com um monte de promessas e depois descartar essa pessoa. Esse tipo de pessoa não é “participante”, “concorrente”, “eliminado”, “membro” e nem nada disso, é uma piada. Esse tipo de gente é levada pra TV porque faz com que o público se relacione, se emocione, tenha pena ou simplesmente ria. A vida antes do programa poderia ser como fosse, ainda seria melhor que a piada que virá depois do fim do programa. Porque essa gente é o bobo de corte da vez, e cedo ou tarde a monarquia se cansa, e ter sorte vai significar não ser executada.
Leia mais em: Calouros, Chacrinha, Ídolos, Matérias - TV, Raul Gil, Rodrigo Faro, Sílvio Santos, The Voice, The X Factor