Sangre de mi Sangre, A Chegada, Para Elisa e um fim de semana produtivo
E não é que, cinematograficamente, o fim de semana foi produtivo? Ficar de molho, com febre alta, tem suas vantagens quando você está atrasada em seus compromissos com a Netflix e o universo cinematográfico em geral. Entre uma dose de Tylenol Sinus e outra de Keflex, conferi Sangre de mi Sangre, A Chegada e Para Elisa. Spoiler: A proporção entre minha melhora e a qualidade dos filmes é inversamente proporcional. Vamos às considerações.
Sangre de mi Sangre, originalmente Musarañas, foi a grande surpresa. Não entendi muito bem a escolha do título mexicano em detrimento do espanhol no cardápio da Netflix, porque dentro do contexto da trama o nome não apenas faz sentido, como é citado em um diálogo. Talvez seja porque as pessoas não saibam o que são musaranhos. Explico: Musaranho é um pequeno mamífero de aparência inofensiva, mas que tem em veneno em sua saliva, tornando-se perigoso quando ameaçado. Como o filme e os personagens, o animalzinho aparenta ser algo que não é.
O longa se passa na Espanha da década de 50. Nia (Nadia de Santiago), com 18 anos recém completados, vive sob os cuidados de sua irmã mais velha, Montse (Macarena Gómez), que passou a ser a líder da família após a morte da mãe e o abandono do pai. Enquanto a jovem vive uma vida mais ou menos normal, a mais velha desenvolveu uma série de traumas da infância até a vida adulta, culminando em ataques de pânico e agorafobia. Trabalhando de casa como costureira, consegue morfina com uma cliente, a única coisa que alivia sua dor constante, além de sua fé no cristianismo. A vida das duas tem uma reviravolta quando Carlos (Hugo Silva), o vizinho do andar de cima, quebra a perna ao cair da escada e bate na porta delas em busca de ajuda.
A presença de um homem na dinâmica familiar traz a tona o que há de pior em Montse, solitária e isolada pela doença, que fica cada vez mais obcecada por Carlos e ansiosa por mantê-lo por perto, ao mesmo tempo em que revisita constantemente seus traumas e pesadelos, especialmente com o pai (Luis Tosar), homem de comportamento inadequado e abusivo. A jovem Nia também se encanta com o belo rapaz de caráter duvidoso, inutilizado em um dos quartos da casa, com quem tem encontros furtivos na calada da noite. Conforme o tempo vai passando e ele continua com as irmãs, passa a ser procurado por amigos, parentes e polícia, colocando os (Agora) três moradores do apartamento em rota de colisão, levando Montse ao limite de sua sanidade.
O final é surpreendente sem fugir da lógica dramática que os diretores Juanfer Andrés e Esteban Roel constroem para sua trama. O inevitável é sugerido o tempo todo como pano de fundo para a história principal, sem interferir com o desenrolar. As atuações de Macarena e Nadia fluem, com uma ótima quimica diante das câmeras, enquanto Tosar – como uma lembrança que precisa se libertar – cresce com a paranoia de Montse. A produção cativa sem precisar de grandes recursos e, quanto mais pensa a respeito, mais você gosta. O bônus fica por contra da trilha sonora do filme, com a canção Duerme, do grupo Canteca de Macao, que mescla flamenco, reggae e ska em suas canções.
O segundo pit stop do fim de semana foi o blockbuster A Chegada, que me deu uma sensação de deja vù desde o trailer. Nele, a chegada de extraterrestres à Terra causa uma comoção mundial e a linguista Louise Banks (Amy Adams) é recrutada para tentar se comunicar com os Heptapods, auxiliada pelo físico Ian (Jeremy Renner). Eu não havia lido o conto que originou o longa, The Story of Your Life, então fiquei encucada com a sensação de reconhecimento. E ai lembrei que sua premissa, especialmente a primeira metade, lembra um bocado To Serve Man, episódio de Twilight Zone onde ETs desembarcam nas capitais mais importantes do mundo e uma equipe de linguistas é contratada pelo governo para traduzir um livro intrigante trazido pelos visitantes que, no caso, se comunicavam por meio de telepatia. O plot twist é um dos mais memoráveis dos 5 anos de seriado e nada tem a ver com a mensagem que Abbott e Costello, os espécimes de Heptapods que desembarcaram em solo americano e “conversam” com os protagonistas, trazem.
Rod Serling, considerava a sociedade moralmente liquidada já nos anos 60 e A Chegada parece seguir esse caminho ao retratar um cenário de guerra e barbárie, natural diante de uma crise de proporções incomparáveis, em todo o mundo, enquanto sugere ao público que a barreira da comunicação não é um problema apenas entre humanos e extraterrestres, mas também entre semelhantes. O que difere o episódio de Serling do longa de Denis Villeneuve é a empatia justificada transmitida pelos personagens centrais – incluindo nessa os próprios ETs – e os questionamentos periféricos que acabam por dominar a trama, sobre as ações e consequências das decisões que tomamos e aquele elemento que nos torna, essencialmente, humanos. A mensagem sobre vida e humanidade acaba sendo positiva no fim das contas, muito embora a jornada seja dolorosa. O filme tem seus mistérios, mas essa parte a gente já decifrou faz tempo.
O saldo deu uma negativada pois, infelizmente, fechei a maratona com chave de latão com o mexicano Para Elisa que, ao contrário das novelas, decepciona do início ao fim. Elisa (Ana Turpin) é uma jovem mimada que está terminando a faculdade e quer viajar com os amigos para Portugal, a fim de comemorar a formatura. Quando a família nega emprestar a bagatela de mil fucking euros, ela fica louca do cu e resolve procurar um emprego qualquer para juntar, ao menos, parte desse dinheiro. A primeira oportunidade que aparece é de babá, em uma casa bizarra, cheia de sinais vermelhos gritando perigo. Só faltava uma placa com a mensagem CILADA pendurada na porta. Após ser aprovada na entrevista, ela é drogada, sequestrada e feita de Barbie humana para Ana (Ona Casamiquela), uma adulta infantilizada pela mãe que, por sua vez, parece ter uma fixação doentia por bonecas.
O filme é uma forçação de barra sem fim para você sentir alguma empatia pela protagonista sem sal e insuportável. Inclusive revelações que nunca chegarão a ela e nada acrescentam à trama, mas fazem seu comportamento ruim parecer aceitável. Desnecessário. Mesmo sendo mimada, chata e egoísta, ninguém merece passar por tanta violência gratuita. A incapacidade da protagonista escapar de seu destino até certo ponto é válida, depois torna-se inaceitável que ela seja oprimida fisicamente por gente do tamanho dela e não tenha traçado nenhuma rota de fuga durante todo o tempo que passou encarcerada, em um ciclo difícil de romper. Entre péssimas atuações e uma trama pobre, nada se salva em uma tragédia cinematográfica dessa proporção. Terrível.
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