Relacionamento abusivo marca documentário O Último Tango
María Nieves e Juan Carlos Copes se conheceram em um clube de dança. Ela ainda era muito jovem e conhecia pouco da vida, com seus sapatos furados e rodeada pela pobreza. Ele, apesar da perna de pau, era esforçado e criativo. Quando trocaram olhares pela primeira vez, traçaram seus destinos no tablado portenho. Aprenderam a dançar juntos e, com a prática e seus maneirismos característicos, formaram por 40 anos a dupla mais importante do país, estrelando musicais na Broadway e longas turnês pela América do Norte. Os bastidores dessa história são contados por meio de dança e entrevistas, com ar de conversa de bar, no belíssimo documentário O Último Tango , de German Kral.
Apesar de ser uma homenagem aos dançarinos, hoje já idosos, o longa foca nos conflitos enfrentados por Nieves durante as décadas de parceria com Juan, um personagem bem mais difícil de empatizar porque era um abusador emocional. Um homem egoísta, que vivia para si e acreditava que o mundo deveria fazê-lo também. E, como de costume, ela dançou conforme a música. No início, por amor a ele. Com os anos, mais por devoção ao tango do que qualquer outra coisa, até ser descartada. Primeiro como esposa. Depois, como parceira de palcos. Paulatinamente, Copes minava sua autoestima e a assegurava que, sem ele, não haveria dança. E ela acreditou. Hoje, solteira e sem filhos – algo que desejava – a impetuosa senhora se sente só e não sabe se o preço que pagou por suas escolhas foi caro demais. Sempre com um cigarro entre os dedos, destila mágoas, afeto e saudades dos tempos simples em Saavedra, onde cresceu, sem medo de transbordar.
Os relatos de María, por si só, bastariam para fazer do documentário um grande filme. Mas Kral foi além, reencenando a vida da dupla através dos corpos de dois pares de atores/dançarinos, que passaram grande parte do tempo fazendo pesquisa de campo, analisando fotos, entrevistando o casal e buscando as reações ideais aos acontecimentos mais marcantes, de acordo com a passagem do tempo e a deterioração da relação. O resultado é inusitado, de forma positiva, e esteticamente belo. Toda a composição foi acompanhada de perto por Nieves, que se emocionou diversas vezes ao revisitar sua história nos cenários e observando os ensaios.
Juan Copes pouco aparece diante da câmera. Mas, sempre que o faz, é lacônico. Desdenha de tudo e todos. No olhar, carrega o mesmo ar de superioridade que tinha quando estava no auge. Formou uma família e a nova dançarina que o acompanha é sua filha. Sim, octogenário, ele ainda dança. Mesmo sem a fluidez de María Nieves, que complementava sua técnica e criatividade, é impressionante ver seus passos e sua paixão pelo tango. Ela já não dança mais. Com problemas de saúde, arrisca alguns passos, mas o tempo que passou levou com ele muito de seu fôlego e energia.
O Último Tango, assim como sua principal personagem, também pisa no freio do meio para o final e infere, a todo o momento, que algo grandioso está para acontecer. Mas não acontece bem do jeito que a gente esperava. Apesar do desfecho um pouco decepcionante, diante do que vinha silenciosamente prometendo, é um filme de muita sensibilidade artística e marcado pela consistência. Colocar Nieves sob os holofotes foi uma escolha acertada, porque ela esbanja carisma com sua personalidade ácida, sem papas na língua. Mas não só. Também foi uma forma de fazer justiça a seu talento, sequestrado pela vaidade de Juan durante os anos em que dançaram juntos. Um tapa com luva de pelica, afinal: ¿QUIEN CARAJO ES COPES?
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