Quando telona e telinha colidem: Feud
Em um dos muitos textos em que relembrei de forma nostálgica alguns filmes que marcaram minha vida, destaquei What Ever Happened to Baby Jane, protagonizado pelas divas Joan Crawford e Bette Davis, como um dos favoritos. O thriller marca a relação de dependência, rivalidade, ressentimento e violência entre duas irmãs. Enquanto Crawford dá vida à doce e desprotegida Blanche, que teve a carreira interrompida por um acidente que a deixou paraplégica, Davis é a afrontosa Baby Jane Hudson, prodígio infantil que, com o tempo, ficou esquecida e caiu no ostracismo.
O fruto não cai muito longe da árvore e a relação entre Joan e Bette era tão tóxica quanto a das personagens. No passado, haviam disputado capas de revista, papeis, homens e, no set do longa, quem se destacaria mais. Se agrediram física e psicologicamente ao longo das gravações e eternizaram a inimizade como uma das mais emblemáticas de Hollywood. Com essa premissa, Ryan Murphy lança mais uma série de sucesso, Feud, destrinchando o embate de décadas entre as duas lendas.
Jessica Lange assume o papel de uma Joan Crawford já decadente e deprimida após a morte do marido, enquanto Susan Sarandon explora a personalidade vibrante e debochada de Bette Davis, conhecida por seus grandes olhos e aparência exótica. Destaco também as ótimas participações de Stanley Tucci, como um dos fundadores da Warner Bros., e Alfred Molina como Robert Aldrich, diretor do filme, que testemunhou de camarote a incessante batalha de egos entre as atrizes.
A produção prova, mais uma vez, que Ryan Murphy é capaz de oferecer boas histórias e entretenimento de qualidade (Afinal, ele foi campeão de estatuetas no Emmy por ACS: The People vs. O.J. Simpson), apesar de se esforçar para tentar provar o contrário com American Horror Story. Feud é divertida e leve, mas toca nos pontos mais delicados das carreiras de Joan e Bette, transformando a antipatia gratuita entre duas mulheres que tinham tudo para ser amigas em algo crível. Eram tempos difíceis para profissionais mulheres e mais velhas, mesmo as que dominaram o cenário hollywoodiano por tanto tempo, e What Ever Happened to Baby Jane? , de certa forma, foi uma tábua de salvação para as duas que, curiosamente, tinham o costume de puxar o tapete uma da outra.
A escolha do elenco combinou com os perfis das atrizes. Ainda que Jessica Lange seja sempre Jessica Lange, mocinha ou bandida, aonde quer que vá, ela tem um refinamento e uma postura muito próximas às de Crawford, que sempre aliou a carreira às suas andanças na alta sociedade. Por outro lado, Susan Sarandon, como sua personagem, é a mais talentosa da dupla e, apesar de pouco parecer fisicamente com Davis, em cena não há quem ouse dizer que aquela mulher não interpreta a melhor Bette Davis que já viu na vida. Ambas, simplesmente, maravilhosas. Aliás, é tudo maravilhoso. É preciso destacar o ótimo trabalho de pesquisa, maquiagem, cenografia, som, direção e roteiro. Feud não funcionaria sem uma equipe afiada e talentosa, capaz de transformar uma história prescrita pelo tempo em algo moderno e de interesse público.
Apesar de ter como objetivo mostrar os bastidores e focar nas atrizes e não no filme em si, sendo este apenas um pano de fundo para o ápice da relação bizarra que mantinham, a produção recriou algumas cenas antológicas, o que deixou um gostinho agridoce de remake no ar. No céu, inferno, ou virando adubo no cemitério, garanto que Joan Crawford e Bette Davis estão se mordendo de inveja das duas, querendo esganá-las e voltar das trevas para interpretarem a si mesmas juntinhas aplaudindo o espetáculo de suas vidas. Para fãs das telonas e das telinhas, Feud – que já está em seu terceiro episódio – é imperdível.
Leia mais em: Feud, FX, Jessica Lange, Ryan Murphy, What Ever Happened To Baby Jane