Ouçam, ouçam!
Não lembro a última vez que usei isto aqui, o que significa dizer que faz tempo o suficiente para perder o jeito.
É estranho como as coisas são: Como o costume é uma parte integrante de tudo que fazemos, e ainda assim é tão fácil tirá-lo da equação, relegando-o à uma posição de bastidores. Num mundo em que a memória muscular faz toda a diferença, e o segundo colocado é mensurado em milésimos de segundo, não tem espaço para o desconhecido: A prática à exaustão é o segredo do sucesso mais que o talento, e quando chega o inevitável momento em que o resultado final não é mais o melhor resultado possível, há um problema. A aposentadoria é uma vergonha não porque os louros prévios perderam seu valor, mas porque o passado não gera interesse.
É estranho como o passado demanda trabalho, como o mesmo resultado significava muito mais esforço e dificuldades para atingir o mesmo resultado. Cada passo contando mais história do que se poderia esperar, e ainda assim sendo menos valioso que a tradição oral. No fim, o que vale ainda é a palavra de cada um, ainda que seus atos tenham tanto mérito quanto.
Não dá pra dizer que a comparação é injusta, afinal nós não mudamos nada, o que mudou foram nossas conquistas, nossos feitos. Ainda criamos estórias de dragões e princesas, apenas o heroi não é mais um nobre cavaleiro num cavalo branco. O nome disse é evolução, então deixe-me contar-lhe uma história:
O Rei convocou com urgência todos os cavaleiros do Reino e além: Sua filha, a Princesa, havia sido raptada pelo Terrível Dragão na cadala da noite.
Fez-se ordem no salão, e todos os cavaleiros, de todos os cantos do Reino se silenciaram, ouvindo as palavras do Rei: “Minha filha, a Princesa,” – disse o Rei – “foi raptada pelo Terrível Dragão na calada da noite”. “Aquele que a resgatar e a trouxer de volta para mim terá minha eterna gratidão e será imensamente rico.”. E prosseguiu: “Aquele que matar o Terrível Dragão terá minha eterna gratidão e será imensamente rico.”.
Os cavaleiros saíram em disparada pelo portão do castelo, galopando em direção ao covil do Terrível Dragão, de espada em punho, sonhos de glória na cabeça e esperança pelo amor da Princesa em seus corações.
Adentrando a caverna, o Cavaleiro encontrou os esqueletos chamuscados daqueles que chegaram antes de si, com suas armaduras derretidas e escudos quebrados, contando a história do Terrível Dragão.
Apresentou-se diante do Rei, que agradeceu-lhe o retorno da filha e a derrota do monstro. Pela cidade houve festa por dias, e o Reino nunca mais teve suas colheitas queimadas e animais roubados.
Fim.
Talvez, um dia, as coisas mudem porque, talvez, um dia, nós teremos mudado. Até lá, ainda contaremos estórias de dragões que todos já sabemos, e já sabemos porque ainda enfrentamos dragões, ainda salvamos princesas. Porque o rei ainda dá ordens e a riqueza ainda muda a nossa vida. Talvez, um dia, poderemos contar novas histórias e criar novos personagens, e quando esse dia chegar teremos então um período em que a memória muscular não vai mais importar. Um mundo em que a aposentadoria será uma vergonha porque escolher ficar de fora de um mundo novo não deveria ser realmente uma escolha. Um mundo em que não há mais interesse porque ninguém mais sabe o que quer.
E, por algum tempo, toda a evolução do mundo não adiantará mais porque a quantidade de trabalho pela frente será tão grande que cada novo avanço será mínimo e penoso e difícil novamente, e irá parecer que nem mesmo o maior dos sucessos fará diferença alguma. E então iremos todos sentar e comparar o velho com o novo, e diremos que o velho foi bom. Diremos que o novo é pior que o velho, mas também que o velho não tem mais um mundo inteiro pela frente, e diremos que o mundo do novo tem tudo para ser melhor que o mundo do velho.
Poderemos estar errados. Provavelmente estaremos muito errados antes de estar certos novamente. Mas não importa realmente. Não agora, pelo menos.
Esse mundo novo não durará para sempre. Aliás, irá passar tão rápido que vamos nos pegar pensando o que exatamente aconteceu e aí começaremos a vestir capacetes e peitorais, a treinar golpes e pintar escudos, e quando todos os preparativos estiverem prontos, esperaremos o mensageiro do rei. Chegará o momento de descer do cavalo e entrar na caverna, contra todo o bom senso: Tem um dragão lá dentro! Vamos olhar às nossas voltar e ver os esqueletos exatamente como os nossos, com armaduras e armas extamente como as nossas, tudo lado a lado, chamuscado, e teremos de ter a coragem – ou talvez a falta de escolha – de ter de abrir a última porta e olhar o que tem depois da soleira. Só espero que não seja uma princesa.
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