A ficção científica e o futuro (Nem tão) utópico de Jornada nas Estrelas
Séries e filmes são, por definição, entretenimento. E o ato de entreter pode ser (E é, geralmente) entendido como o ato de não perturbar o espectador com questões difíceis. Se não fosse assim, um debate científico ou político seria considerado entretenimento puro. Mas o momento de se distrair é justamente a ocasião pra se distanciar do que pesa na mente e relaxar. E, no que nos interessa para o texto de hoje, a ficção científica foi para o cinema e a televisão com esse mesmo propósito natural de todo entretenimento que é nos distanciar da dificuldade diária de viver e nos dar breves períodos de tranquilidade despreocupada. Mas em algum ponto da história da indústria de entretenimento, começamos a dosar a realidade e todas as suas questões difíceis com o irreal, com o fictício; talvez essa mistura tenha sempre existido, quem sabe. De um jeito ou de outro, o que saiu foi algo ainda mais poderoso, algo que não nos desliga da realidade, mas que nos convida a pensar nela, nos inspira – e termina por nos fazer pensar em nós mesmos. Mas ainda: Às vezes podemos refletir até sobre nosso futuro. Vem comigo.
Pra começar
Um dos temas mais antigos e recorrentes da ficção científica é justamente imaginar como será o futuro da Terra e dos seres humanos. Seja através do advento da viagem no tempo ou apenas ambientando uma história no futuro, muitos autores e roteiristas tentaram essa façanha e alguns pareceram chegar a prever o que aconteceria, limitados, é claro, pelo conhecimento que tinham e da ciência de suas épocas. Júlio Verne preconizava a viagem à Lua em Da Terra à Lua, de 1865. Isaac Azimov descreveu a internet como ela é hoje e seu impacto em nossas vidas, anos antes dela ter sido tornada pública em 30 de abril de 1993. Yevgeny Zamyatin, autor russo e um dos precursores injustiçados da ficção moderna, imaginou uma espécie de foguete tripulado que saía de órbita no seu romance Nós, escrito em 1920.
Apesar de serem exemplos impressionantes, eles não demonstram nada de sobrenatural. Parece que a mente humana está programada para tentar pensar à frente, e não só isso, mas também usar velhos conceitos pra fazer coisas novas. No início do século 20 houve um grande surto de curiosidade sobre viagens interplanetárias e começou a engatinhar aquilo que seria o foguete moderno, que já remontava à velhas criações de guerra chinesas e árabes, que envolviam objetos cilíndricos com propulsão externa.
Em 1903, o professor de matemática russo Konstantin Tsiolkovsky publicou A Exploração do Espaço Cósmico por Meio de Dispositivos de Reação, um dos primeiros trabalhos sérios no ramo, onde defendia o uso de nitrogênio e oxigênio como combustíveis desses dispositivos – foguetes, fazendo os cálculos da força necessária para a propulsão. Robert Esnault-Pelterie publicou um artigo em 1912 onde fazia cálculos básicos sobre a energia necessária para orbitar a Lua e planetas próximos, e propôs o uso de energia atômica (Usando rádio) pra conseguir isso.
Mas, finalmente, o maior responsável pelo foguetes modernos foi Robert Goddard. Inspirado desde a infância pelo escritor de ficção científica H. G. Wells, Goddard os projetou com sistemas de propulsão melhorados e evoluções físicas, e até cogitou, em um livro de 1920, maneiras de mandar um foguete de combustível sólido para a Lua. Alguns riram dele, como o editorial do jornal The New York Times em 13 de janeiro de 1920: “O Professor Goddard (…) desconhece a relação da ação com a reação, e a necessidade de ter algo melhor do que um vácuo contra o qual se reagir – dizer tal coisa seria absurdo”. Mas o “absurdo” virou verdade décadas depois.
A história do foguete é interessante, mas nem tudo que um dia foi ficção científica realmente acontece. Aliás, ela aparece mais como fonte de inspiração do que outra coisa. Mesmo assim, como eu disse, a relação dela com a realidade foi estabelecida em algum ponto – ou quem sabe sempre esteve aí. Também podemos notar que apesar de lidar com a ciência, nem todos os avanços vistos neste gênero são puramente tecnológicos. Afinal, faz também parte da nossa curiosidade querer saber como serão os humanos que estarão por trás das máquinas futuristas, e não é por acaso.
Jornada nas Estrelas e o sonho humano
Em 1966, ia ao ar a série Jornada nas Estrelas, divisada por Gene Roddenberry a partir de uma idéia que teve sobre uma “caravana das estrelas”. Pra mim, é um dos pontos altos da interação entre realidade e ficção, por conta de seu lado humano. Ela nos conta a história do que soa como um futuro utópico:
No século 23, a humanidade já superou ou está em vias de superar a maioria dos seus problemas internos, como a fome, doenças, guerras e o ódio entre povos e raças, permitindo a existência de um governo global e cooperativo entre o que outrora foram países, agora agrupados em grandes federações. O primeiro contato com uma raça alienígena, os vulcanos, foi feita ainda no século 21 (2063) e em clima de paz, na mesma época em que o cientista Zefram Cochrane conseguiu pela primeira vez com que uma nave terrestre viajasse a velocidades maiores que a da luz, com a dobra espacial. Com ajuda dos vulcanos, os humanos conheceram outros povos amigáveis, e em 2161 foi fundada a Federação Unida dos Planetas, uma espécie de conselho que teve como membros fundadores a Terra, Vulcano, Alfa-Centauro, Tellaris e Andoria, tendo como objetivo principal a união dos povos e culturas, e o bem-estar geral daqueles sob sua jurisdição. Em meados do século 23, a Federação contava com 183 membros e um século mais tarde atingiria quase um trilhão de habitantes.
Para fins diplomáticos, científicos, de exploração e de defesa, a Federação Unida dos Planetas conta com o Comando da Frota Estelar. Apesar de tida como uma organização militar, derivada provavelmente das antigas forças armadas da Terra, a Frota não se baseia só na defesa ou tampouco na agressividade. Inclusive, a Diretriz Principal da Frota Estelar reza que ela não interfira no desenvolvimento natural de outro povos, e está entre seus ideais que somente recorra à força para proteger seus interesses em último caso. A organização também é responsável por levar a mensagem de paz e evolução da Federação a todo o universo conhecido, agrupando cada vez mais planetas sob sua asa.
Foi nesse contexto que a nave estelar USS Enterprise começou, no ano 2265, sua “missão de cinco anos, para explorar novos mundos, pesquisar novas formas de vida e novas civilizações”, que duraria até 2270. No auge da exploração espacial, se aventurar no espaço não-mapeado por tanto tempo era algo nunca antes tentado. Com provisões para uma tripulação de mais de 400 pessoas, a nave terrestre saiu em busca de novos conhecimentos – mais um grande feito para os seres humanos e seus amigos de outros planetas, tanto os de longa data quanto os que só agora iriam conhecer as boas-novas da Federação.
Somente esse breve resumo do que constitui Jornada nas Estrelas já me permite talvez explicar, em parte, por que a série é tão fascinante pra tanta gente (Inclusive este que vos fala): Ela é um resumo do sonho humano, ou ao menos um traçado em linhas gerais dele. No seu mundo fictício e futurista (Derivado do atual, do qual tanto reclamamos), os grandes males da humanidade estão sendo domados um por um, incluindo tudo que antes nos separava uns dos outros, que causava o ódio e a desavença. Os inimagináveis avanços foram, portanto, tanto tecnológicos como sociais.
O que tudo isso significa, no final, é uma grande evolução contra o nosso instinto natural de agressão e destruição, tantos direcionado para fora quanto para nós mesmos, para dentro. A evolução consiste em uma luta, como veremos a seguir.
Jornada e a ficção científica em análise
Com exceção das ficções que se passam em futuros distópicos, ou seja, futuros feios, de destruição e retrocesso (Que devem ser analisados em separado), podemos dizer que boa parte desse ramo do entretenimento nos promete a evolução em anos vindouros. Somos apresentados a possibilidades tentadoras de novas tecnologias, veículos mais rápidos e mais comodidade e qualidade de vida. Além disso, às vezes a ficção nos fala do enfraquecimento de velhos males oriundos do próprio ser humano, cuja extinção nos permitiria buscar a paz. Em 1930, o neurologista austríaco Sigmund Freud escreveu o livro O Mal-Estar na Civilização, e em certo ponto fala o seguinte sobre o desenvolvimento da cultura:
O pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano, e retorno ao que afirmei antes, que a civilização tem aí o seu mais poderoso obstáculo. No curso desta investigação, impôs-se-nos a idéia de que a cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade. Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros, que pretende juntar indivíduos isolados, famílias, depois etnias, povos e nações numa grande unidade, a da humanidade.
Aquilo que Freud chamava de Eros é o componente sexual da nossa vida, que deseja a criação da vida, favorece a produtividade e a construção. Faz parte, portanto, do processo de avanço da civilização. Segundo Freud, ele está em oposição ao instinto de destruição. Acompanhem:
Mas esse programa da cultura se opõe ao instinto natural de agressão dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um. Esse instinto de agressão é o derivado e representante do instinto de morte, que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo. Agora, eu acredito, o sentido da evolução cultural já não é obscuro para nós. Ela nos apresenta a luta entre Eros e morte, instinto de vida e instinto de destruição, tal como se desenrola na espécie humana. Essa luta é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana.
Ora, interpretando livremente o que Freud disse e aplicando o pensamento na ficção científica “positiva”, a evolução do ser humano em si aparece em seus avanços culturais. Traçando então uma possível “tabela da evolução cultural”, estamos ainda no estágio de reunir as etnias e povos. Em Jornada, esse processo já praticamente se completou na Terra, somos uma espécie melhorada e o caminho continua agora no universo. A evolução cultural é a nossa luta básica e vital. A sociedade de Jornada nas Estrelas reflete, portanto, a continuação em direção à vitória sobre o que há de pior em nós mesmos. Não é o único caso: Uma das bases da ficção científica é essa quase utopia, a visão do nosso melhoramento. E coloco ênfase no “quase”, pois as linhas gerais traçadas em séries como Jornada nas Estrelas parecem o caminho que devemos e que vamos acabar trilhando eventualmente – é o que temos feito até hoje, na verdade. Amansar lentamente aquilo que temos de pior também parece ser uma de nossas principais características. Apesar de tudo que exponho aqui parecer complicado, a sabedoria popular e nosso próprio instinto mostram que nada disso é novidade.
Mas vejam, a situação em Jornada nas Estrelas é melhor que a nossa presente realidade, sim, mas ainda não representa o nosso ápice. A Frota Estelar prefere resolver problemas e conquistar territórios pela diplomacia e se opõe fortemente aos métodos opressivos e agressivos do arqui-inimigo da Federação, o Império Klingon (Que é, na verdade, a agressividade quase pura). Mas a Frota eventualmente também apela para a força e ainda mantém traços do instinto de agressividade humana, principalmente para conseguir artigos muito desejados, como os cristais de dilítio, que são a fonte de energia para as imensas naves estelares – cristais que precisam ser escavados em planetas através da galáxia. Aliás, as naves, como a Enterprise, são equipadas com armas bastante poderosas e meios de forçar, quando necessário, as vontades da Federação.
No fim
Comecei este texto afirmando haver uma ligação entre a ficção científica e a realidade. Depois de tudo que escrevi, concluo que essa ligação é óbvia: A realidade, em primeiro lugar, é representada por nós, que escrevemos a ficção. A realidade é a nossa condição. Nada mais justo que refletir no que produzimos nossas ambições mais profundas, e também nossos medos. A ficção científica faz os dois. A ambição de evoluir em vários sentidos, e o medo de falharmos nisso, de terminarmos em um futuro distópico.
Ah, e antes de terminar este texto, lembram de quando eu falei sobre a ficção às vezes “prever” o futuro? Em 1994, o físico mexicano Miguel Alcubierre propôs um método teórico de mover objetos a velocidades mais rápidas que a da luz. O método imaginado ganhou o apelido de dobra espacial, como em Jornada nas Estrelas, onde as naves usam essa dobra para se deslocar rapidamente. A idéia de colocar um objeto numa bolha espacial e curvar o espaço parecia uma idéia muito distante, até a NASA começar a pesquisar o assunto a sério ano passado. Em agosto desse ano, a agência espacial americana passou a discutir a criação em laboratório da primeira bolha de dobra. Os cientistas admitem que ainda estamos muito, muito longe, e nem sabem se a teoria vai mesmo ser viável um dia. Mas alguém está pensando nisso. Sempre começa assim.
Vida longa e próspera.
Adendo: Também falo de outros assuntos em contos e crônicas no Estranho Sem Nome. Confira lá, mas não atrase a evolução da humanidade deixando o Bacon de lado. Contamos com você.
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