A Ilha do Tesouro e a metamorfose da diversão
Robert Louis Stevenson é o cara que escreveu vários livros que acabaram por se tornar as fundações de estilos, formatos e narrativas diferentes: O Médico e o Monstro muito provavelmente é o mais famoso deles (Acabo de notar, para meu desconcerto, o quão pequena é essa resenha), mas há vários outros, como a duologia As Aventuras de David Balfour, The Ebb-Tide, Weir of Hermiston e A Ilha do Tesouro.
O que você sabe sobre piratas? Enquanto que nos dias atuais a Somália é o grande centro de pirataria no mundo tirando a internet, a pirataria que mais conhecemos teve seu início (Ou, talvez muito melhor, sua expansão) no século XVII, mas a coisa toda já existia ao redor do mundo pelo menos desde o século III a.C. Porém foi só em 1881 que a pirataria começou a ganhar essa cara mais amigável que hoje conhecemos: Papagaio no ombro, perna de pau, tapa olho, tesouros enterrados em ilhas desabitadas. Claro que isso tudo existia antes, tanto na vida real quanto na literatura, mas a primeira vez em que um pirata teve isso tudo foi só na obra de Stevenson.
Não precisa de muito para se dar conta de que matar por dinheiro e mentir não chega nem perto do que há de pior nos atos de um pirata de verdade: Long John Silver, o grande pirata da obra, mente, mata, rouba e engana; sem sombra de dúvidas uma pessoa detestável, mas se você ligar a TV verá que a humanidade pode muito mais que isso, e meia hora de uma aula de história comprova que sabemos disso há muito, muito tempo. O autor foi bem claro em sua proposta do livro: Uma história fácil de ser lida, baseada nas obras de diversos outros autores (Incluindo relatos de piratas de verdade), para seu afilhado, Lloyd Osbourne (Com quem, mais tarde, coescreveria alguns livros), durante uma estadia nas praias da Escócia.
A Ilha do Tesouro não tem absolutamente nada de memorável em termos literários, mas tem personagens carismáticos, aventura e uma coleção gigantesca de estereótipos: Tudo que se precisa para criar uma fórmula. Deu certo, é claro, e hoje o pirata é baseado num falso cozinheiro, apesar de ainda levar o nome de capitães muito reais e seus navios. Não é nem um pouco à toa que, em Watchmen, tenham sido os piratas a substituírem os super-heróis nos quadrinhos: Barba Negra, Anne Bonny, Henry Morgan, Bartholomew Roberts e Capitão Kidd foram Hitler bem antes de Hitler.
Então hoje, 135 anos desde o lançamento de A Ilha do Tesouro, ainda vale à pena lê-lo? Bem… Não.
A obra que fez de Stevenson um autor famoso, hoje, como era há quase um século e meio, é simplista, com um final abrupto, sem grandes reviravoltas e sem importância nenhuma. Stevenson sabia disso tudo inclusive, mas o fez mesmo assim por um motivo muito simples: Mais vale algum tempo de diversão pra ocupar o filho da tua mulher e poder dar uma bimbada do que uma epopeia histórica. A Ilha do Tesouro ainda é um clássico e ainda pode ocupar e divertir crianças ao redor do mundo, e isso é incrível, mas é só isso.
Porém, hoje, mais do que diversão, a obra é uma grande demonstração de como uma mistura de sorte, timing e perícia podem sim mudar o mundo: Não só A Ilha do Tesouro definiu o que se tem por “pirata” no último século como ajudou a moldar diversas outras obras, mostrando a luta do bem contra o mal, o herói que sempre faz a coisa certa, o tal coming-of-age e a importância da experiência (A aventura) na vida de cada um… A Ilha do Tesouro é, hoje, mais um documento do que um livro para meninos, e isso tem um grande valor… Só não para os meninos.
Quantos outros autores conseguiram esse tipo de coisa (Ainda que não seja exatamente de mérito deles)? De bate-pronto assim os únicos que me vem à memória são Verne e Asimov, e claro que Verne é muito mais próximo de Stevenson. O que hoje temos como tropos (Sim, a palavra existe, pode ir checar), como fórmulas, foram criadas por essas pessoas (Ainda que o compêndio de Lavoisier continue válido) e ganharam mais do que piadas em sitcoms e cenas toscas em blockbusters, mas um certo status cultural. Hoje, o Nautilus, as Três Leis e tesouros de grandes piratas são mais do que personagens, figuras de narrativa e elementos das histórias, são modelos. Moldes para outras obras. E isso é muito, muito estranho se pararmos para pensar que todos eles partiram de histórias bobas para crianças. Talvez, tenham ganho importância conforme os autores as desenvolveram em suas obras, mas à princípio, nada feito.
Como deve ser estranho, para uma criança, ter de pensar que aquilo que lhe é apresentado como algo próprio para ela se tornará o exemplo sobre o qual adultos edificarão rios de dinheiro, fama, nome e, por que não, poder… É meio triste, pessoalmente, eu já estar do lado de cá desse questionamento. Será que também é triste ver a sua obra se tornar meia dúzia de diretrizes de como ter sucesso para quem não liga nem um pouco pra diversão do seu filho?
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