A Piada Mortal

Contos terça-feira, 22 de abril de 2014

A maior piada do mundo se chamava Augusto Matraga Pinto. Augusto Matraga – o Pinto ele escondia – era uma pessoa normal – ou quase – mas ganhava a vida mexendo na internet. Fundou com uns amigos um blog de piadas e ficou o que se pode chamar de equivalente hipster de rico. Publieditorial disfarçado de comédia mal feita rende muita grana, vocês nem imaginam. O que acontece é que Augusto Matraga – Ou Matagrão, sua assinatura virtual – traduzia posts de sites americanos e fazia um sucesso besta. Também pagava de artista no deviantART e até mesmo se arriscava em algumas tirinhas de autoria própria. À primeira vista suas obras pareciam bem transgressoras e geniais, e conseguia até mesmo rapar umas cocotinhas pagando de pensador profundo, de gente que tem uma galáxia crescendo dentro de si e nunca vai dormir antes das cinco da manhã por que a cabeça tá ocupada por pensamentos suicidas. Como a boa criança forjada na rede mundial de computadores que era, Augusto passou de blogger a vlogger, de vlogger a VJ e de VJ a formador de opinião virtual. Sua palavra era lei na cidade dos 140 Caracteres.

Mas Augusto é uma pessoa bem comum até, não é? Por que seria ele a maior piada do mundo? Por que morreu. Sim, me perdoem, mas o texto é meu e dou spoiler se quiser, e quando bem entender. Se quisesse ter dado já no título, assim teria feito e ninguém teria nada a ver com isso. Peço desculpas, só que a gente precisa entrar no clima do assunto desde já e prefiro ser pau no cu de cara, pra acostumar cedo.

Bom, morrer também não torna –não deveria – tornar ninguém especial, por que se tem uma certeza na vida é que todos partiremos desse plano. Menos os ateus, os ateus não gostam de falar em plano. É melhor sussurrar baixinho antes que eles ouçam e venham fazer flame war nos comentários. Os ateus viram adubos. Encaixei minorias o suficiente no texto já?

Acontece que Augusto chegou um dia em casa e, ao abrir a porta do quarto, deparou-se com um mar de gatinhos. Gatinhos de todas as cores. Todos miavam em uníssono, diziam que o amavam e pediam pra que se juntasse a eles no paraíso. Augusto amava gatinhos. Atirou-se ao tapete felino com todo o coração e, ao chegar no chão, viu que o mesmo derretia. O piso branco parecia o resto de cola quente que sai da pistola e você usa pra grudar no cabelo da amiguinha da frente, a enxurrada de porra que sai na meia depois de seis meses sem transar. Derretia e refazia num amontoado de imagens, de sangue e órgãos pisados, de animaizinhos mortos num domínio .onion. Tinha chegado à área proibida da internet, onde criancinhas são mortas e transformadas em bonecas lolita. O paraíso felino era uma mentira, afinal. Enquanto descia numa espiral de referências que prefiro não fazer pra não confundir a cabeça do leitor, Matragão só conseguia pensar em cada tirada genial que lhe renderia RT’s e reblogs o suficiente pra derrubar os provedores do mundo inteiro. Dorgas, mano, era a frase que mais passava em sua cabeça.

O que Matagrão não percebeu é que, na verdade, ao chegar em casa, escorregou numa poça d’água. Tinha deixado o filtro da cozinha ligado enquanto enchia uma garrafa e, como estava postando no Instagram a foto do seu lanchinho fitness daquela manhã, tropeçou e caiu, arrebentando o supercílio direito na quina da mesa. Suas action figures dos Vingadores assistiam perplexos à cena de cima da estante da sala, congelados em uma expressão eterna de indignação – ou de ressaca, no caso do Robert Downey Jr. Ou seria pós sexo? Ou a cara que ele faz quando tira as calças de manhã e tem outra verruga no pau?

A pancada foi tão forte que roubou-lhe a vida e o Talento. O Talento, o chocolate, que ele comia na hora e ficou tão empapado de sangue que não podia mais ser reaproveitado. O epitáfio obedeceu à regra geral das celebridades da internet, foi pixelado e precedido de hashtag em alguma rede social – ou em todas. Matragão se entregara ao ofício de formador de opinião virtual com garra e fervor, vivendo o estereótipo que lhe vestiram ao máximo. Fez-se nascido, crescido, reproduzido e assassinado na piada. Vejam bem, caros leitores, na piada. Uma, única, una e eterna, eterna e passageira. A piada que se renovava em pixels diferentes cada vez que passava de mão em mão, de autor em autor, e viajava a BR virtual de cabo a rabo. Os traços despojados e irreverentes da falsa modéstia, do desenhista que finge ser ruim, o Derp e a Derpina fazendo as vezes de Capela Sistina do mundo moderno. Pode-se chamar de contestador aquilo que é repetido às pampas pela geração sem filtro? Ou será que essa fase dos memes já passou e eu estou presa em janeiro de 2014? A mesma piada, reproduzida, reinventada e de autoria roubada. Roubada tantas vezes que sabe-se lá de onde surgiu, talvez você, leitor, seja o inventor original e não faz ideia. O inventor original. Existem vários que são só inventor.

Augusto ainda está lá, na verdade. Menti no início do texto, talvez ele não tenha morrido de fato, não ainda. A queda brusca causou morte cerebral, mas o corpo ainda está deitado numa cama de hospital, com tubos saindo de cada buraco, moral ou imoral. Os melhores piadistas, seus discípulos, insistem em dizer que não morreu, vive altas aventuras num mundo Pokemon dentro da própria cabeça. Tem gente também que manda respeitar o morto, tem gente que chama essa gente de fresca e diz que se o morto tivesse vivo e outro fosse em seu lugar morto, o primeiro faria as mesmas piadas que andam fazendo com ele. Vive-se uma guerra no país da internet nesse momento.

A mesma piada, na verdade.
Recortada, colada, reproduzida e pixelada. Recortada, colada, reproduzida, pixelada.

Esse texto não é direcionado a ninguém, mas espero que a carapuça sirva em todos. Eu sou bem otimista quanto a esse assunto, mas hoje deu vontade de chutar o balde. Obrigada de nada.

Leia mais em: ,

Antes de comentar, tenha em mente que...

...os comentários são de responsabilidade de seus autores, e o Bacon Frito não se responsabiliza por nenhum deles. Se fode ae.

confira

quem?

baconfrito