A Teoria Dinâmica Sertaneja e as variáveis temáticas
Na eterna construção pós-traumática que é a vida, às vezes nos vemos na necessidade de um deslocamento por demais fastidioso e/ou exaustivo para ser percorrido à pé. Como trem de cu é rola e foda-se a sua individualidade, havemos de participar da celebração cultural e centro social que é o ônibus, o marinete, a jardineira, o autocarro, o busão, o coletivo, o bumba, ou, como dizem os burros do caralho mineiros, o trem.
E é nesse famoso ambiente, mais místico que o nordeste de Jorge Amado, mais popular que o sertanejo do interior de São Paulo (É, pois é), mais lotado que cu de gaúcho e mais odiado que o Congresso e todas as câmaras de deputados do país juntas que há de ser realizado um ritual típico brasileiro. Não, não estou falando do já clássico funk boladão saindo da caixa de som do celular dois chips mais próximo de você. Na verdade não estou nem falando dos ônibus de linha, dos interurbanos próximos e dos raros escolares, não, estou falando dos ônibus de viagem e dos fretados.
Os ônibus de turismo, também conhecidos como passeio de pobre, inferno sobre rodas e disfarce pra contrabando, são um capitulo à parte que não vem ao caso… Aliás deixemos os paus de arara de fora também… É dois palito pra PF bater aqui na porta de casa ou algum vagabundo com uma peixera invadir meu quarto à noite pra me matar.
Mas então, lá está você, desconfortavelmente sentado no seu banco executivo com assento de incríveis 15x20cm, fazendo força com o joelho pra quem está na sua frente não deitar ainda mais o banco e num duelo infinito e mortal com o puto ao seu lado pelo domínio do importantíssimo ponto estratégico que é o apoio de braço central. Naquele momento você é um guerreiro, e mais que a suposta virgindade de uma princesa qualquer, você está lutando pelo bem e pela justiça. Chato, é claro, mas é algo com que todos já estamos acostumados, algo que cada um de nós, após perder tais batalhas na nossa primeira viagem, já sabemos que será uma questão de vida ou morte, e portanto perder e desistir não são opções. Está no nosso sangue.
Você consegue aturar O Homem da Máscara de Ferro que colocarão no DVD, resiste à urge de vomitar cada vez que alguém sai do “banheiro” do ônibus, aguenta a sede, a fome e o cansaço e se nega um momento de alívio fora do ônibus para não perder o tão precioso espaço que a pessoa ao seu lado com certeza tentará usurpar. Mas aí o motorista bota uma música.
Eu não sei explicar. Não sei se os motoristas se imaginam heróis do início do século XX, lutando, tal qual Lampião, contra a corrupção e a ineficiência do governo, espalhando alegria aos outros veículos quilômetro após quilômetro, ou se é uma questão de identificação com tais malfadadas histórias, numa eterna agonia pela moça de sorriso bonito que eles largaram para trás para tentar a vida na cidade grande… Diferentemente do que pode parecer, não é dor de corno. Todos sabemos que casos extraconjugais são um acordo comum de ambas as partes quando algum deles passa tempo demais na estrada: Uns preferem putas de vinte e poucos, outros de menos de 12, mas isso são meros detalhes. As esposas, como a internet nos ensina, preferem a zoofilia.
A questão é que eles vão tocar sertanejo. Não o sertanejo de calça-sou-castrado e camiseta-mamãe-dei-o-cu-no-camaro-amarelo, mas aquele sertanejo de vinte, trinta anos atrás. Aquela moda de viola com viola e não violão e banjo. O legítimo brega e não o brega-Regina–Casé. A raspa do tacho mesmo, saca? Aquele troço que a galerinha maneira das faculdades de humanas ouvem ironicamente, bando de posers do caralho. Não, apenas motoristas de ônibus e vendedores de pamonha são de verdade, só eles podem debater a discografia do Beto Barbosa e qual a melhor versão de Morango do Nordeste, só eles sabem quais os novos lançamentos da cena underground de covers do Tonico e Tinoco e qual combinação de meia listrada com meia quadriculada torna a voz do Falcão mais doce e harmoniosa.
Isso, meus caros, se chama cultura. Enquanto a TV reprisa Castelo Rá-Tim-Bum pela ducentésima septuagésima quarta vez, estradas afora você tem aulas completas da vida do brasileiro. Enquanto você compra uma base USB pra aquecer seu café de vinte reais do Starbucks, quixotes e panchos digladiam ferozmente contra os preços do combustível e as tarifas de pedágio. Enquanto você ouve essas bandinhas frescas gringas no seu fone de ouvido com bass da puta que lhe pariu, a realidade se esvai em frente aos seus olhos surdos.
E é por isso que você ouve os melhores sucessos do Leonardo volume 6, pra poder dizer pra todo mundo que o importante é valorizar a música e a cultura nacional, que o transporte mais barato polui menos, que café tem que ser feito no filtro de pano, que a tarifa de avião é um roubo, que é falta de educação botar fone de ouvido com alguém ao seu lado e que o legal mesmo é a viagem e não o destino. Fodam-se vocês e sua hipocrisia, vou de trem de verdade da próxima vez.
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