Conto: A Porta
A porta abriu. Amarrotado, com cara inchada, tirando a sujeira do canto dos olhos. Ele saía para trabalhar, e esperava pacientemente a chegada do elevador. A porta abriu. Querido, esqueceu o celular.
A porta abriu. Nove e meia da manhã. Ela saía para comprar legumes para o refogado do almoço. Um dia comum, sem alteração no preço das cenouras. Ao voltar para casa, encontrou os dois filhos assistindo desenhos animados na televisão.
A porta abriu. Hora de levar o lixo pra fora. Dar almoço para as crianças, delicioso refogado. Dar banho nas crianças. cabelo frisado. Convencê-las a ir à escola, missão complicada. A porta abriu. Ajeitou o cabelo se olhando no espelho do elevador. Arrumou a alça do sutiã, que se encontrava a mostra. A porta abriu, a do elevador. Quinze minutos de espera pelo transporte escolar. A propósito, mensalidade deveria ser paga em dois dias.
A porta abriu. Hora de arrumar a bagunça feita pelos meninos. Lápis-de-cor, giz-de-cera. Pega o aspirador. Vestígios de lápis apontado e borracha gasta espalhados pelo tapete. Aliás, o novo tapete. Tudo fica mais fácil quando se acostuma com a situação. Secar o banheiro. Colocar a roupa pra lavar. Devia ter feito isso mais cedo, pra não demorar a secar. Talvez, agora só estaria seca no dia seguinte. Mas tudo fica mais fácil quando se acostuma com a situação.
A porta abriu. Tinha que ir ao banco pagar o condomínio atrasado há três dias. Olhou-se no espelho do elevador e tirou o excesso do batom. Verificou cartão na bolsa. Quebrado. A porta giratória pára. Deixa as chaves e celular na caixinha de acrílico. A porta giratória não pára. Pagar com cheque. Moça atenciosa, sorridente. Porta giratória não pára.
A porta abriu, de volta ao lar. Duas da tarde. Pega o telefone. Aperta os números que já foram decorados. Pois tudo fica mais fácil quando se acostuma com a situação. Vinte minutos depois. A porta abriu. Sou casada, mas e daí? A porta abriu. Beijinho de despedida no hall, e uma promessa. Até mais tarde. Hoje tenho aquele assunto pra resolver. Outro beijinho de despedia no hall. Dormir para se recompor.
A porta abriu. Seis da tarde. Descer para pegar os meninos na portaria. Crianças estúpidas não sobem de elevador sozinhas. A cabeça dói. Culpa? A porta abriu. Os meninos correm para a televisão. Fazer janta. Esquentar almoço, na verdade. Mãe, papai chegou, está na tv. Põe a cabeça na sala para entender a frase complexa. Canal de segurança interna do prédio. Garagem. Um marido traído e um homem de capuz. Agora o corpo inteiro na sala. Esse canal nunca tinha sido tão interessante. As mãos molhadas pingavam água no carpete de madeira. O do capuz olha para a câmera. Ela reconhece o cara. Sim, ela conhece o cara. Armado. Havia dito que atropelado era suficiente. Ele nunca ouve. Um único tiro. Duas crianças mudas. Vai à área de serviço recolher as roupas do varal. As roupas dele. A cabeça ainda dói. Culpa? Mas os órgãos internos festejam entre eles. Sentia inveja. Por não festejar junto. Por não poder.
A porta abriu. Agora sem capuz, sentou no sofá e pegou o controle remoto. Olhos arregalados de crianças mudas. Procurava algum programa de esporte. Ela secava o chão que havia molhado. Sorrindo, a porta fechou. Fechou pra ele. A porta não abrirá novamente. Pra ele, não.
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