Conto: Perseguição Matuta
Eram meados dos anos 90. Miguel de Albuquerque, comerciante de uma tradicional cidade do interior nordestino, voltava da capital dirigindo sua mais nova aquisição: Um automóvel de “’última geração” e cheio de “frufrus” com os quais seu novo dono pretendia gabar-se diante dos amigos tão matutos quanto ele mesmo.
Já anoitecia quando Miguel saiu da concessionária onde comprara o carro e rumava à sua cidade. A viagem era bastante longa, mas ele já estava habituado a varar noites na estrada quando viajava à capital para tratar dos seus negócios e voltava durante a madrugada. Todo esse esforço para que no dia seguinte pudesse abrir sua loja o mais cedo possível.
A madrugada foi longa e tensa devido às péssimas condições da estrada e à monótona solidão. Os primeiros raios de sol trouxeram novo ânimo ao viajante. Eis que o dia clareou por completo e Miguel lembrou-se que os faróis não mais precisavam ser utilizados e pretendeu desligá-los, entretanto, neste ponto surgiu uma questão: Onde estava a chave de comando para apagá-los? Todos os carros que o comerciante já tivera tinham uma chave seletora que ficava localizada à esquerda do painel do carro. Era simples, bastava girar e escolher entre desligado, farol de neblina ou farol baixo. “Onde parou a bendita chave seletora dos faróis?” Ele, então, parou o carro no acostamento e procurou, sem sucesso. Ficou até com dor de cabeça “de tanto aperreio”, mas não conseguiu apagar os faróis.
Não havia mais o que fazer. O vendedor do carro havia dado uma explanação geral sobre os acessórios do carro e entregou-lhe o carro já ligado e com os faróis já acesos, pois o céu já estava escurecendo. Nada falou sobre como ativar/desativar os benditos faróis, tampouco passou pela cabeça de Miguel perguntar a respeito, já que não esperava que a tal chave seletora saísse do lugar onde estivera nos modelos anteriores. Assim, decidiu que o melhor a fazer seria continuar a viagem de modo a evitar mais atrasos e, quando chegasse a sua cidade, ligaria para a concessionária para tirar a dúvida.
Então, mais um obstáculo surgiu naquela viagem. Deserta e perigosa como era aquela rodovia, logo Miguel notou que alguém o seguia. Pelo retrovisor viu que se tratava de um carro similar ao seu – a propósito já era o segundo desse modelo que via durante a viagem, o primeiro havia cruzado no sentido oposto da estrada. A verdade é que, de repente, aquele carro aparecera em sua retaguarda e dali não desgrudava. Mesmo quando o comerciante reduziu sensivelmente a velocidade o perseguidor não o ultrapassou e acompanhou seu ritmo.
Mais: O mal-encarado que o seguia começou buzinar freneticamente e gesticular apontado o acostamento. “Nem pensar. Nunca vi essa figura e não está com cara de quem quer somente pedir uma informação”. Miguel começou a fantasiar acerca das intenções do seu perseguidor e recordou-se que poucas semanas antes havia recebido cartas anônimas que expressamente o ameaçavam. À época não dera muita importância, pois acreditava serem tentativas por parte de seus concorrentes de intimidá-lo, algo relativamente comum por aquelas bandas. Agora via que quem quer que fosse o autor das cartas, não estava blefando. Sem dúvidas haviam armado uma emboscada para matá-lo. “Também pudera. Eu facilitei muito com essa mania de me mostrar e acabei espalhando pelos quatro cantos da cidade que estava indo comprar um carro novo. Mas, deixe estar. Não vou me entregar fácil, não”.
O perseguidor permaneceu na mesma rotina: Buzinar e fazer gestos ordenando que parasse no acostamento. Em determinado momento, o confronto tornou-se inadiável. O suposto pistoleiro ultrapassou Miguel e começou a fazer manobras que o obrigavam a diminuir a velocidade até parar ou correr um sério risco de bater seu carro. Foi assim que o bravo Miguel decidiu parar no acostamento e saiu em disparada do carro.
Em punho a arma que, invariavelmente, carregava na cintura. Dirigiu-se ao seu opositor que também acabara de parar o seu carro. Para surpresa do afobado comerciante, o perseguidor, ao ver a arma, entrou em pânico e levou as mãos à cabeça demonstrando medo e nenhuma disposição de brigar.
Tudo não passou de um grande mal-entendido e com os ânimos acalmados tudo foi explicado: O pobre homem também acabara de adquirir aquele carro – do mesmo modelo do de Miguel – e, assim como ele, não conseguiu decifrar o mistério dos faróis, logo, quando anoiteceu teve que passar a noite dormindo no carro, pois não conseguira ligá-los. No seu caso, o vendedor não havia entregue o carro com as luzes acionadas porque o sol ainda ia alto no céu. Assim, quando cruzou na estrada com um carro do mesmo tipo e com os faróis acesos, deu meia-volta e iniciou a perseguição com a inocente intenção de tirar sua dúvida perguntando onde diabos haviam metido aquela chave seletora para acionar as luzes dos faróis. Para sua surpresa e desapontamento, Miguel compartilhava da mesma cruel dúvida.
Com tudo esclarecido, despediram-se, desculparam-se e cada um tomou o rumo para casa, um tanto frustrados. Quando entrou no carro, Miguel viu um símbolo familiar: era o desenho de uma lâmpada acesa! Assim, finalmente percebeu que enquanto os faróis dos outros carros eram acionados num dispositivo que ficava ao lado do painel, agora, neste novo modelo, as luzes passaram a ser comandadas por uma pequena chave seletora na ponta da sinaleira. Melhor explicando, o “comando de seta” agora tinha, em sua ponta, um desenho de uma lâmpada acesa e uma dupla função: além de poder ser movido para cima e para baixo – com a finalidade de indicar a direção que se pretendia tomar com o automóvel –, poderia ser girado para acionar os faróis. “O motivo disso”, refletiu Miguel, “ou é pura economia, ou é ruindade, só para complicar a vida do matuto”.
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