Disco a disco: A discografia comentada do Sonic Youth
Uma das bandas que mais me influenciaram quando resolvi tentar ser músico (E não consegui, claro) foi o Sonic Youth. As guitarras desencontradas, as afinações excêntricas e sem noção, a microfonia, o noise, ali tinha tudo que um bom (E um péssimo) guitarrista deveria saber. Veja aqui comentada disco a disco a discografia desta banda, que vai deixar saudades, seja pela originalidade ou pelas músicas inesquecíveis.
A história do Sonic Youth começou quando o guitarrista Thurston Moore se mudou para Nova Iorque em 1977. Ele queria brincar de ser punk. Logo de cara, entrou pra uma bandinha chamada Coachmen, e tocando nessa banda que Thurston conheceu Lee Ranaldo, que era fã do Coachmen e ex-membro do Glenn Branca’s Electric Guitar Ensemble, e Kim Gordon, ex vocalista de uma banda fracassada chamada CKM. Eles resolveram formar uma banda. Thurston sugeriu depois de alguns nomes a combinação do nome do meio de Fred “Sonic” Smith do MC5 com um grupo de reggae, Big Youth. Kim depois falou que “Assim que Thurston chegou com o nome Sonic Youth, um certo clima de que era mais do que nós esperávamos fazer veio a tona.”
Confusion is sex – 1983
O primeiro disco do Sonic Youth mostrou que a banda não estava de brincadeira. Somente o caos. De pop, nada nas primeiras faixas da banda, que experimentava afinações extravagantes, mania roubada de Glenn Branca, para construir mantras pautados na catarse, desembocando num feedback incontrolável. Ainda sem um baterista oficial (Um tal de Jim Sclavunos e um outro chamado Bob Bert se alternavam nas baquetas), Moore, Ranaldo e Gordon se trancaram num estúdio e gravaram esta meia hora de noise. Como canções, apenas uma versão lo-fi de I Wanna Be Your Dog dos Stooges e The World Looks Red, quase uma canção, com letras de Michael Gira. A reedição de 1995 contém o EP Kill Yr Idols, com os primeiros clássicos Brother James e a canção título do EP.
Bad Moon Rising – 1985
Neste disco, o Sonic começava a mostrar o que estava por vir. Brave Men Run apenas começa e o ouvinte percebe que neste segundo disco a formula do Sonic irá continuar, com texturas mais intensas, como no final de Society is a Hole, no começo de I Love Her All the Time, e em toda Satan is Boring. Violência e crueza em todos os riffs. Um dos grandes momentos acontece em Death Valley’ 69, inspirada nos assassinatos do clã Manson, com a participação de Lydia Lunch nos vocais. O primeiro disco com a presença de Steve Shelley, peça fundamental na banda e que colocou a casa em ordem, no lugar do baterista Bob Bert.
Evol – 1986
É Tom Violence começar, e Evol arranca com o inesperado: Sim, a harmônia pode acontecer no Sonic Youth. E pode até chegar a emocionar. É uma canção, finalmente. É isso que será o Sonic Youth a partir deste disco, a base melhor do que nunca, com Shelley sentado ali e a crueza de sempre, mas com lugar para sutilezas e climas densos e hipnóticos. A enorme Shadow of a Doubt, por exemplo, com a voz de Kim Gordon criando um clima mais que perfeito. Aqui finalmente provamos da voz de Lee Ranaldo, que assina sua primeira música, In The Kingdom #9. Depois deste disco, foi só a ascensão do Sonic. Momento clássico: Expressway to Yr Skull.
Sister – 1987
Thuston canta em um canal e Kim o faz do outro. As guitarras soam como uma briga, gritando e berrando, como se estivessem sendo assassinadas. Esse foi por muito tempo o meu disco preferido dos Sonics. Muitos devem ter se apaixonado pela banda escutando Cotton Crown e o hino Schizophrenia, com sua bateria cavalgante e seus picos de tensão, um dos momentos mais inspirados da história da música alternativa. Também estão lá Beauty Lies in the Eye e o cover de Johnny Strike, Hot Wire My Heart. Mas Sister se destaca por ser o primeiro disco dos Sonics onde tudo se encaixa perfeitamente, as afinações, os feedbacks, as dissonâncias, o noise, a fúria, a microfonia, tudo se torna funcional e seguindo a melodia.
Daydream Nation – 1988
De cara, uma trolada: A linda intro de pouco mais de um minuto de Teen Age Riot faz qualquer um pensar que ali teremos uma linda e singela canção. Mas não, é um hino punk, retardado, aparentemente mal tocado, desafinado, com suas guitarras mal (Ou muito bem) encaixadas. Para muitos, este disco é a obra prima do Sonic Youth. O disco preferido da galera indie, o único que qualquer um consegue ouvir numa boa, faixa a faixa, sem pular nenhuma ou sem apertar no repeat e grudar em outra. É também o disco preferido da crítica, tão aclamado que foi capaz de despertar o interesse da super gravadora multinacional Geffen. E eu deixo bem claro que nenhum elogio é exagerado a esse álbum, é um grande trabalho de consagração, onde se condensa melhor que nunca o que o grupo vinha buscando: Aplicar sua escola pós punk e seus dotes experimentais à canção de rock. Vem deste álbum seu status de marco da música alternativa. Claro, com pérolas como Silver Rocket (Um dos melhores riffs da história, perfeito) e Candle (A dissonância como uma forma de acalmar e enfurecer ao mesmo tempo). Impossível não escutá-lo do começo ao fim. Uma e outra vez. E de novo.
Goo – 1990
E então chegava a hora do Sonic Youth ganhar o mundo. Contrato com a Geffen, turnê mundial com Nirvana, Dinosaur Jr., Babes in Toyland e os anos 90 a ponto de explodir. Se Daydream Nation era a síntese perfeita entre experimentação e pop, Goo ultrapassa a barreira e se joga de cabeça nas melodias (E uma produção um tanto quanto mainstream, há que se dizer). Assim, milhões novos fãs ao alcance. Titanium Expose (Que riff putaqueparivelmente fodástico!), Lee quebrando tudo em Mote (Quem puder ouvir toda a discografia sabe que em todo disco, a melhor música é a composta por Lee Ranaldo), a cadência de Dirty Boots e o pogo mais feliz do mundo com Kool Thing (Com Chuck D do Public Enemy e um solo de guitarra que faz cócegas na espinha). Ah, tem também Disappearer, uma obra prima. Era a música indie tocando finalmente nas rádios.
Dirty – 1992
Depois da consolidação com Goo, estava aberta a brecha: O Nirvana dominou o mundo (Desbancando do primeiro lugar da Billboard o monstro Michael Jackson) e as bandas da cena alternativa passaram a jogar na primeira divisão da música. Sem a concorrência dos Pixies, o Sonic Youth se tornou uma especie de padrinho dos alternativos. Foi o disco mais bem produzido da carreira do grupo, com a produção do Butch Vig, que produziu o excelente Nevermind e era a estrela do momento. Os Sonics tiraram da cartola várias jóias para colar nas rádios, como 100% (Na época, não dava pra ver um video de skatistas que não tivesse essa música como trilha sonora), Youth Against Fascism e especialmente Sugar Kane (Uma das mais belas melodias da carreira do Sonic). Depois de Dirty, o Sonic Youth se tornou parte da música popular americana: Estava nas rádios, em todas as lojas, em filmes, seriados, até nos Simpsons. Todavia, não há que se mal interpretar as coisas: O fato de Dirty ser seu disco mais popular não quer dizer que tenha sido uma tentativa de seguir os passos de Nevermind. Os novaiorquinos seguiram na sua e esse foi o passo maior deles em direção a música pop. Menção à parte para Chapel Hill e Theresa’s Sound-world, duas maravilhas do noise progressivo.
Experimental Jet Set, Trash and No Star – 1994
Dizem que depois do barulho vem o silencio. Com a banda superexposta e popular demais, o grupo decide mudar de rumo. Experimental… foi o momento de baixar a bola. Diminuíram tudo: O tom, a velocidade e as expectativas. Um disco para antecipar o fim da festa (Saiu pouco depois da morte de Kurt). O blues marca o pulso. Assim assinala a faixa de abertura, Winner’s Blues (Uma pérola de Thurston Moore). Kim Gordon tem aumentado seu protagonismo e, tirando o pseudo hit Bull in the Heather, tudo vai em passos lentos (Skink, Bone, Sweet Shine). Sem renunciar à desaceleração, o grupo também entrega alguns rocks (Screaming Skull, Self-Obsessed and Sexxee). A pérola: Tokio Eye.
Washing Machine – 1995
Aqui temos um retorno as origens. Depois da renuncia ao mainstream de Experimental, a banda dá um passo em direção ao experimentalismo. Ainda com a verve melódica a essa altura inalterável, mas sem resignar seu gosto pela microfonia e pelo noise, aqui finalmente voltando a ser mais e mais exacerbado do que nunca. As novas músicas se estendiam e terminavam num enxame de guitarras (Quase não há baixos nesse disco), chegando até a dez minutos de duração (Washing Machine) e quase passando dos vinte (The Diamond Sea, uma das melodias mais belas que Thurston Moore já compôs). A pérola do disco é a agradável Little Trouble Girl, um dueto cândido e arrepiante entre as duas Kims, Kim Gordon e Kim Deal (The Breeders, Pixies). Uma revoltada volta as origens.
A Thousand Leaves – 1998
E então a banda com seus fãs consolidados (E sem aquela aura de vendidos, que foi totalmente desfeita com os dois últimos discos), eles lançam seu trabalho mais ambicioso. A abertura com Sunday (Que tinha um clipe em que aparecia Macaulay Culkin e que tocava o tempo todo na MTV) engana bastante. Este é na verdade o disco mais complexo dos caras. A duração (Uma hora e quinze) não esconde isso, assim como os lentos e suspensos diálogos entre guitarras que se deixavam levar pela improvisação. Muita gente não curtiu e achou a lombra do disco muito dispersa. Mais além dos típicos estouros, A Thousand Leaves plana por paisagens bucólicas e a melancolia de peças como Wildflower Soul ou Hits of Sunshine, essa dedicada a Allen Ginsberg. Na minha opinião, este foi o disco mais sútil da banda.
NYC Ghosts & Flowers – 2000
O experimentalismo e o improviso do disco anterior desembocaram neste disco, o trabalho mais estranho e diferente da banda. Custa a engrenar, por causa das suas introduções alongadas ou por suas continuas quebras. Parece bossa nova em vários momentos, principalmente por causa da bateria marcada em ritmo quebrado, solto. É um álbum sem ganchos, sem hits, sem riffs, apenas com climas, densos e etéreos. Eu odiei o disco na época de seu lançamento. Mas a passagem do tempo soube jogar a seu favor e lhe outorgou um lugar privilegiado na discografia do grupo. Eu confesso que ainda não entendi qual foi a deste disco, mas sinto que a cada vez que o escuto, gosto mais e mais dele. Hoje soa quase como uma sinfonia experimental: Oito movimentos que se compeletam, formando um labirinto de sons, atmosferas fantasmagóricas, ruídos urbanos, tensão e calma. É a primeira parte da trilogia com Jim O’Rourke, que assume aqui como produtor. A influência do movimento beat se faz mais presente que nunca na arte da capa, de William Burroughs.
Murray Street – 2002
Depois assinar a produção do disco anterior, Jim O’Rourke se tornou um membro oficial da banda (E outra vez cuidou da produção), tudo pareceu indicar que começa uma nova era na banda. No campo musical, agora com três guitarras, a banda era capaz de mais melodias e noises do que nunca. Mas este terminou sendo o trabalho mais fraco da banda. Coincidência ou não, foi o primeiro disco dos novaiorquinos logo após a queda das Torres Gêmeas (O título do disco assinala o lugar onde caiu um dos motores dos aviões sequestrados). O melhor momento ficou com Karen Revisited (Composta por Lee Ranaldo, claro).
Sonic Nurse – 2004
Finalmente, com a adaptação de O’Rourke (Atuando como músico e produtor, outra vez) completa, ele resolve que iria deixar a banda logo após o disco. Mas finalmente deixa sua marca. As dez canções do disco simplesmente foram as melhores da banda em uma década. Já no início, Pattern Recognition e Unmade Bad dizem tudo. Outros grandes momentos são New Hempshire, I Love You Golden Blue e a cota de Ranaldo em Paper Cup Exit, pra variar, a melhor do disco (O cara só precisava compor uma pra compor a melhor).
Rather Ripped – 2006
Com O’Rourke já de fora da banda, os Sonics tentaram uma volta as origens, com um rock composto de guitarras mais diretas do que em seus últimos trabalhos. E iniciam o disco a mil, com Reena, onde os vocais de Kim Gordon soam como no início da banda (Lembrem que afinação não era o seu forte). O disco funciona muito bem, se assemelhando a veia punk dos primeiros trabalhos e sabendo usar a experiência dos discos anteriores, juntando perfeitamente a agressividade do inicio da banda às combinações harmônicas, inspiradíssimas, que permitem melodias novas ou ao menos curiosas em seu repertório. Grudentas, as linhas de guitarras e de voz, como em Incinerate, What a Waste e toda Rats (Ranaldo, como sempre, compondo a melhor música do disco) se destacam num disco que está à altura do anterior.
The Eternal – 2009
O até agora disco definitivo e derradeiro da banda, subiu um degrau a mais na carreira do quarteto, que mudava de gravadora (Saíram da Geffen para a superindie Matador). Um trabalho inflamável que seguiu no equilíbrio entre o pop e experimentalismo, mas agora a coisa apodrece um pouco, e a mão de John Agnello na produção enche o grupo de aspereza. Canções que bem poderiam figurar em Evol ou em Sister dão conta de uma espécie de volta à fonte que, ao contrário do disco anterior e sem estar claramente entre o melhor de sua carreira, oferece momentos altos em canções como No Way ou Antenna. Infelizmente, esse parece ter sido realmente o último disco, pois a banda se separou em 2011, após uma passagem pelo Brasil no festival SWU. Quem viu, viu, quem não viu, terá que sonhar. Sonic Youth acabou mesmo. Fiquem com este show no SWU, o último.
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