Hellblazer, School Shootings e as Cabeças de Pedra na Ilha de Páscoa
É sábado, dia 19, enquanto escrevo isto aqui, e ontem houve mais um atentado numa escola americana, mais uma vez por um aluno atirando contra colegas, professores e funcionários: Outro school shooting. Dez morreram e outros dez foram feridos. Não que seja novidade alguma à esta altura. Mas, pra este texto, temos que voltar mais no tempo do que apenas ontem, temos que voltar pra 1998, e olhar pro que tava acontecendo com John Constantine.
Em dezembro de 1998, Paul Jenkins, autor de Hellblazer por quatro anos, tinha enfim deixado o cargo, e o escolhido para substituí-lo foi o Warren Ellis, que na época tava em alta por conta de The Authority e Transmetropolitan. Tava tudo indo muito bem até abril de 1999: Dia 20 aconteceu o primeiro grande tiroteio numa escola americana, em Columbine, que terminou com 13 mortos e mais 21 feridos, além do suicídio dos dois atiradores. Não só foi uma cadeia de reações sociais gigantesca, como também impactou na edição 141 de Hellblazer, que tava pra sair dalí algumas semanas.
Com 267 casos de tiros em escolas, datando desde o Século XVIII, Columbine não foi novidade alguma pros Estados Unidos (Sim, eu contei um por um na Wikipedia, e sim, eu tenho plena consciência que isso sequer é uma pesquisa séria na área)… Mas eram os anos 90, e depois de quase 300 casos alguém tinha que parar e prestar atenção na coisa. E uma das pessoas que prestou foi o então editor da DC, Paul Levitz, que quando viu a história que o Ellis tinha escrito e que tava pra ser publicada no mês seguinte, ficou maluco e proibiu a parada.
Atire – ou Shoot, no original – acompanha Penny Carne, uma pesquisadora que está preparando uma apresentação pro Senado americano referente aos atentados em escolas. Ela não consegue nada de suas pesquisas, mesmo passando dias à fio vendo e revendo filmagens, fitas e fotos dos atentados, dos cadáveres e dos atiradores… O que ela consegue é identificar Constantine entre os espectadores que se juntaram ao redor dos corpos em vários e vários dos casos. Sendo o Constantine, é claro que era apenas questão de tempo até ele aparecer pessoalmente pra ela.
Agora fica esperto porque vai ter spoiler pra porra. Aliás, se você tiver a oportunidade de ler o gibi antes de ler o resto disso aqui, melhor ainda.
De novo: Eram os anos 90. Os culpados pela violência eram os videogames, a TV e as drogas. Tem até piada sobre isso no gibi. Penny fica tempos em suas pesquisas, e o que ela consegue é exatamente o que está na sua frente, em centenas de fotos e vídeos: Crianças matando outras crianças, sem provocação aparente, sem motivo, só a bala na cabeça seguida de suicídio do atirador. Com o prazo terminando, Penny simplesmente não sabe o que fazer, até perceber Constantine vez após vez, nos mais diversos pontos do país, sempre como testemunha de algum dos atentados: Não dá pra explicar a presença do cara alí, ele (Aparentemente) não tem nada com os ocorridos, e quando ela recorre ao FBI a única informação que ela consegue é que a ficha de Constantine é sigilosa.
Constantine então diz pra ela que está ajudando um amigo, cujo filho foi uma das vítimas de um desses atentados. O que se segue é ele jogando na cara dela o quão incompetente ela é, o quão alienada do mundo lá fora, o quão hipócrita e reducionista… Vale lembrar, Constantine é inglês (E o Warren Ellis também), e apesar de tudo a Inglaterra trata violência civil de forma muito diferente dos EUA. Junta isso com a veia de anarquismo, punk e contracultura que o personagem sempre teve e você tem uma excelente forma de debater os problemas sociais americanos.
Com a decisão de Paul Levitz de proibir a publicação de Atire, o Warren Ellis acabou largando Hellblazer em protesto, e basicamente o gibi ficou largado de lado… Ou quase, porque em 2000 ele acabou vazando na internet, muito pro agrado do público e de crítica, que aliás só falavam a mesma coisa que os outros funcionários da DC falavam ao ler a história: Que ela seria ótima pra debater o tema, ainda mais naquele momento, logo após Columbine. Ainda sim, nada feito, e a história foi publicada oficialmente lá nas gringas só em 2010, numa coletânea bem legal que incluiu a excelente Mate Seu Namorado/Como matar seu namorado, do Grant Morrison (Que já foi resenhada aqui no Bacon – também tem spoiler de monte), e que saiu aqui no Brasil em 2013. Aliás, Atire é curtinha, 21 páginas só.
Essa coisa da vida imitar a arte, mesmo tratando-se de tragédias e atentados, não é novidade alguma (Tenho certeza que vocês já ouviram várias dessas histórias sobre o 11 de setembro), mas também não temos como saber qual teria sido o impacto da HQ se publicada na data original… Ainda assim, lá em 2010 a história continuava atual… Do mesmo jeito que continua hoje, 19 anos depois. Esse texto, vocês sabem, o texto já foi feito tanto na gringa quanto aqui no Brasil. Claro que nesses quase vinte anos algumas coisas mudaram: Pelo menos a gente culpa menos os jogos e filmes, e gravadores de voz à fita já são coisa do passado, mas ei, não é como se a coisa estivesse muito melhor.
O que vale apontar é que, nesses últimos anos, e principalmente desde o tiroteio na Flórida, em fevereiro deste ano, o foco deixou de ser o apresentado em Atire. Atualmente o grande vilão é a arma (Mais especificamente, a AR-15), o problema é a facilidade de acesso dos americanos à armas e a falta de controle e regulamentação… Em Atire, o problema não é legislativo, é social: O que gera a violência não é munição barata e arma vendida em loja de conveniência, é a falta de futuro, a falta de estímulo e de oportunidades… É o discurso anterior. Até uns anos atrás, a raiz do problema era a educação e a socialização – em outras palavras, nosso estilo de vida marginaliza e aliena quem mais precisa de orientação e suporte; hoje a raiz do problema é que gente com problemas mentais e falta de capacidade social não precisa de grandes esforços pra colocar as mãos em ferramentas cuja função é matar o mais rápido possível e na maior quantidade possível.
Este texto aqui não é de revolta, não é de apontar culpados e criticar nossa falta de ação ante o problema: Eu preciso que vocês estendam o discurso. Atire diz que uma criança ou adolescente sem futuro não vê motivo pra continuar viva. Hoje, no mundo real, o que se diz é que poder ter armas deveria ser proibido porque pessoas fazem coisas ruins com elas. Talvez ambas as coisas sejam verdade, mas não é assim que eu vejo.
O que Atire está me dizendo é que, em 100% dos casos, violência tem motivação social, e que o ambiente é o fator determinante no que uma criança irá se tornar: Uma criança sem futuro é ou um assassino ou uma vítima. Não. Não. O mundo tá cheio de gente que enfrenta suas dificuldades de cabeça erguida e que não mata e nem se prostra quando ameaçada, e que cresceu em situações péssimas. Meu deus, o Brasil tá cheio de gente assim. Felizmente boa parte da população no mundo é assim, porque precisa de muita coragem e força de vontade pra viver a vida sem se entregar e sem recorrer à violência por frustração.
O que tantos e tantos ativistas e vítimas sobreviventes estão me dizendo é que um objeto é o vilão, e que se esse objeto não existisse, ou o dono tivesse de fazer um pedaço de papel muito grande e chato, com seu nome e endereço e enviá-lo pro governo, o problema seria resolvido. Também não. Arma é uma ferramenta, e uma cuja função é matar: Às vezes matar é necessário. Não é bonito dizer isso, não é um ato como outro qualquer, tipo passar manteiga no pão, mas às vezes é vida ou morte. Às vezes é necessário combater violência com violência. Eu sou sim à favor de maior controle de armas nos EUA, do mesmo jeito que sou à favor do porte aqui no Brasil (Isso tudo é um assunto muito maior e muito à parte), mas um objeto não faz nada: Quem faz é quem usa.
Um atirador é sempre a mesma pessoa. Essa pessoa não é homem ou mulher, branca ou negra, rica ou pobre, doente mental ou saudável, pária ou popular. Essa pessoa é a pessoa que olhou pra própria vida e decidiu que a melhor coisa a se fazer é ir cobrar seus problemas com quem ela acha que criou esses problemas. Quem atira, atira: Joga a culpa e a tristeza e o medo pra frente, ao invés de procurar mudar a própria vida. Isso aqui, também, é um assunto gigantesco e infinitamente mais complicado do que isso, mas pra não faltar neste texto: Tem vários motivos sociais, econômicos e psicológicos porque tem tanta gente entrando em escola com uma arma e atirando em quem vir pela frente, do mesmo jeito que tem vários motivos pelos quais a grande maioria é homem, branco e com uma AR-15. Todos esses fatores são relevantes e importantes, mas todos eles não mudam o fato de que, independente de quem esta pessoa seja, o fator comum é a desistência, é a covardia e a preguiça de fazer uma vida melhor pra si mesma.
A situação é muito pior nos Estados Unidos, mas a gente aqui no Brasil não está livre (A gente já teve um em Realengo, vale lembrar), e vocês sabem que tem coisa que, quando começa, é extremamente difícil impedir. Não dá só pra apontar dedo, não dá pra desviar do assunto, tem que bater de frente. Culpar arma nem culpar falta de perspectiva de vida é bater de frente. Isso é secundário. Controle de armamento não me assusta, incel também não, e muito menos mal exemplo em convivência. O que me assusta é que tiro em escola está mais e mais comum e ao invés de falar sobre os atiradores a gente ainda tá falando sobre exemplo de educação e arma. São tópicos extremamente importantes – são tópicos, infelizmente, vitais – mas enquanto a gente esconder o debate atrás de calibre de bala e bons exemplos morais, a coisa não vai mudar.
Atire vale a leitura: A arte é boa, o roteiro é excelente, e como qualquer outra coisa que gere debate, é uma obra extremamente válida. Mas ela já tem 20 anos, e ficar pensando nos anos 90 só gera nostalgia babaca e reboot desnecessário. Se alguma coisa deste texto ficar na sua cabeça, que seja isso aqui: Lá em 1999 o que nós, como sociedade, falávamos que tinha o que tinha que ser alterado era como cuidávamos das crianças, hoje falamos que o que tem que ser alterado é regulamentação de armamento. Debater perspectiva de vida não adiantou, debater controle de armas não está adiantando. Daqui há um tempo o discurso vai mudar novamente, e ainda vai ter criança atirando em criança na escola.
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