Literatura de Cordel – Parte I
Já falei algumas vezes e repito: Literatura deve ser entendida no sentido mais amplo possível, de forma despida de preconceitos e formalismos. Pensar de forma contrária é fechar os olhos para as diversas manifestações populares que surgiram e têm surgido ainda mais fortemente com o atual “mundo globalizado”. Coerentemente com esse entendimento, as definições para o verbete “literatura” no dicionário Michaelis (ou em qualquer outro “pai dos burros”) são:
s. f. 1. Arte de compor escritos, em prosa ou em verso, de acordo com princípios teóricos ou práticos. 2. O exercício dessa arte ou da eloqüência e poesia. 3. O conjunto das obras literárias de um agregado social, ou em dada linguagem, ou referidas a determinado assunto
Partindo dessa premissa – bastante ampla, diga-se de passagem -, literatura pode ser um conto, um romance, um HQ, até mesmo uma letra de música (bandas emo e coisas do gênero não fazem música. Sim, estou sendo preconceituoso). Lembre-se que Bob Dylan há pelo menos dois anos é cotado para o Nobel de Literatura. Falei tudo isso para justificar o enquadramento e até a nomenclatura da literatura de cordel, um gênero literário que por muito tempo foi rechaçado pelas supostas elites intelectuais e só recentemente tem ganhado algum reconhecimento e valorização. Curiosa e lamentavelmente, a literatura de cordel é definida pelo mesmo dicionário já mencionado da seguinte forma:
“A de pouco valor literário, como a das brochuras penduradas em cordel nas bancas dos jornaleiros”
Para mim, esse tal “valor literário” é altamente questionável e subjetivo. Contudo, é fato que os folhetos de cordel são recheados de erros gramaticais e ortográficos capazes de causar arrepios em qualquer pessoa que tenha alguma consideração às regras formais básicas do nosso vernáculo. Ainda assim, a riqueza e engenhosidade das rimas, a criatividade e comicidade dos causos são suficientes para atiçar a curiosidade e saciar o prazer de qualquer leitor, mesmo que seja dos mais exigentes críticos literários (ou não).
Em bom destacar que, apesar de ser taxada como literatura regional do Nordeste, os cordéis são originados de Portugal, onde os pequenos livretos eram expostos pendurados em espécies de varais de corda. No Brasil, o costume ganhou mais adeptos e escritores no sertão nordestino, os chamados cordelistas. José Francisco Borges, o J. Borges é um grande expoente desse tipo de manifestação, e continua produzindo freneticamente em seu museu/atelier localizado em Bezerros, agreste pernambucano.
No sertão de Pernambuco
Perto de Serra Talhada
Um moço chamado Soca
Casou com Anunciada
Uma moça muito séria
Que não dava uma risadaOs 2 casados de novo
Viviam na santa paz
Soca gostava da moça
Tinha ciúmes demais
Que até pra ir obrar
Só ia com Soca atrásE os 2 iam vivendo
Alegres, muito contente
Um dia foi ao dentista
mandar extrair um dente
mas ia com soca atrás
vinha com soca na frente(Trecho adaptado de “A mulher que matou o marido de chifre”)
Não há só gracejos na poesia de cordel. Também são presentes e marcantes as críticas sociais e as lamúrias do povo sofredor, como quando fala do Sol:
Uma peça bonita
Feita pelo Criador
Sou quente, clareio o mundo
No sertão sou o terror
Porque acabo a lavoura
Do pobre agricultor
Quanto às formas, não há muita rigidez. Nos trechos apresentados, as estrofes são de 6 versos cada (mais comuns), mas também há estrofes de 8 e 10 versos. A melodia das rimas é uma característica marcante que deve ser dominada pelo cordelista, tanto para facilitar a memorização como para dar um ar teatral e musical às leituras, que também podem ser acompanhadas por aquelas violas insuportáveis que sempre estão próximas a algum turista. Por enquanto, fico por aqui, na próxima semana falo um pouco mais sobre essa curiosa manifestação cultural.
Leia mais em: Bob Dylan, Cordel, Cultura, J. Borges, Literatura, Literatura de Cordel, Literatura Regional, Nordeste, Preconceito, Varal