Mais do que um jogo
“Por que o nome dessa semana para a coluna?”, você se pergunta; por que “mais do que um jogo”?
Porque de vez em quando, muito de vez em quando mesmo, nos deparamos com algumas coisas nos vídeo-games que são exatamente isso: mais do que um jogo. Chama-los de “obra de arte” é exagerado em alguns casos, e ainda se discute o status dos jogos como criações realmente artísticas, então não quero tocar nesse assunto agora.
Mas o fato é que muitas vezes botamos lá um cartucho, cd ou dvd pra rodar, e acabamos envolvidos por uma seqüência de acontecimentos na tela, por uma narrativa, por uma experiência, que fazem a gente se desgrudar do mundo por um tempo, que nos absorvem, que propõem uma realidade diferente daquela que conhecemos. Certos jogos nos pegam de surpresa: você olha a capa, dá uma sacada em uns screenshots, mas quando pega o negócio pra jogar mesmo, vê que nada poderia te preparar para aquilo que você jogou.
Bom, vou começar a exemplificar agora, para as coisas ficarem mais claras e pra vocês não acharem que eu SEMPRE escrevo bêbado. Vamos pegar um jogo relativamente conhecido, e que já citei por aqui.
Shadow of the Colossus
Faz dois anos que joguei Shadow of the Colossus, e ainda continuo surpreso por um jogo desses ter sido lançado no mercado. Vejam, é um jogo praticamente sem história, sem um personagem super-poderoso, sem power-ups, sem vídeos alucinantes, sem música arrebatadora, sem NADA quase, porra. Shadow of the Colossus não se utiliza de nenhum dos recursos que normalmente fazem o apelo comercial de um jogo, e não sei como os executivos com o rabo cheio de dinheiro da Sony aprovaram o lançamento dessa parada.
O jogo começa e você vê que tem uma mulherzinha desmaiada ou morta, sei lá. Aí vem uma luz, e uma voz te diz que você tem que matar um monte de colossus. TEM QUE MATAR, não pergunta por quê. Você tem uma espada de hobbit, um arco vagabundo e é isso aí. Te vira, maluco. Seja um McGyver.
Tu tem um cavalo também. Um dos cavalos mais realistas que já vi num jogo. Melhor que a Epona do Zelda, é impressionante. E tu vai depender muito desse cavalo, porque cê vai andar pra cacete até achar alguns dos colossus, então nem pense em ir a pé.
Cada colosso mora lá na casa do caralho.
Mas então, tu tem que passar o cerol num colosso, que a essa altura você não tem a menor idéia do que seja. Beleza. Aí tu sai do templo, levanta sua espadinha vagabunda em direção ao sol, e o reflexo vai te dar uma direção genérica de onde o bicho tá. Quando você sai do templo, você vê um MUNDO inteiro á tua volta; o jogo só tem um cenário, e ele é gigantesco. Pra cada lado diferente vai ter um colosso, e tu vai ter que ir atrás de um por um.
Foi aqui que eu comecei a sacar que esse jogo era meio diferente; subi no cavalo, fui pro lado que a luz indicava, mas na prática eu não tinha a menor idéia de pra onde estava indo. Lógico que eu já joguei vários títulos onde eu tinha que andar num mapa procurando alguma coisa, mas aqui é diferente. Pra começar, você não tem um mapa com as localizações de cidades, pontos de interesse, cavernas e etc. Eu confesso que foi foda lidar com uma busca de algo sem ter um mapinha com uma flecha apontando pra onde você tem que ir, como Grand Theft Auto ou Medal of Honor. A gente realmente se acostuma a ser tratado como um imbecil pelos jogos.
Ok, sobe no cavalo e segue pra direção genérica. Me diga qual foi o último jogo que você jogou onde você passa MINUTOS INTEIROS cavalgando sem porra nenhuma acontecendo á sua volta? Sem um inimigo pra matar, sem uma árvore pra escalar, sem um baú pra abrir? Sem uma porra dum passarinho assobiando, cara? Lembro de ir cavalgando, olhando pro cenário e pensando se tava fazendo alguma coisa errada, porque nada acontecia no jogo.
Pra que lado mesmo?
Fui indo, indo, e dei de cara com uma parede de rochas. Show. E agora, motherfucker? Dá-lhe descer do cavalo e ver qual é. Aí o jogo te ensina uns comandozinhos básicos de como escalar paredes, pular entre rochas, se pendurar em brechas de penhascos e essas coisas. Nesse ponto tu começa ver o esforço dos desenvolvedores para montar um personagem realista, sem nada de sobre-humano. O protagonista do jogo é o que a gente chama aqui no sul de “um guri de bosta”. Esqueça Kratos do God of War, aqui você é um adolescente com o preparo físico de qualquer colegial que só faz aula de educação física e joga um futeba no fim-de-semana. É como se você estivesse dentro do jogo. Você tem que admirar a inteligência dos desenvolvedores, porque o protagonista faz pouco mais do que você mesmo conseguiria fazer na situação dele. O guri tropeça, cansa, ofega quando corre demais, cai de lado e tudo o mais. Genial, cara. Identificação imediata com o bando de jogadores sedentários que compõem o público do jogo.
Bom, depois que você se acostuma com os comandos e termina de escalar o rochedo, você chega num platô, onde você finalmente tem o encontro com o seu primeiro colosso. É um bicho humanóide, enorme, feito de pedra e mato. O bicho é totalmente NEUTRO, não tenta te atacar nem faz gestos ameaçadores em sua direção, se você ficar na tua. Como assim, não vai me atacar? Ainda por cima, ele não tem cara de mau. Como disse o Piratão:
Agora, Shadow of the Colossus é uma ode ao sadismo. O colosso tá lá, quieto, na dele, aí cê sobe no bicho e começa a FURÍ-LO. Que é que ele faz? NADA.
Tá certo, tem uns dois ou três que tentam te furar de volta, mas a maioria é DóCIL demais pra tentar qualquer coisa. São só pobres almas sendo atacadas cruelmente pelo moleque e seu cavalo.
E é mais ou menos assim que você se sente durante o jogo todo. Você fica pensando se precisa mesmo matar o bando de bichos, que não fizeram nada pra você além de existir. Já pensou nisso? Sobre como você, que se considera tão civilizado e cristão não precisa de um mísero motivo pra matar, a não ser uma voz que te diz pra fazer isso? Porra, em Metroid, em Call of Duty, até nos jogos do Mario, você SABE por que está passando fogo em geral: porque eles SÃO DO MAL, mano. Mas e aqui? Como que você faz pra justificar pra você mesmo os seus atos?
Vou te furar só porque você é grande e feio, mano.
Na verdade a sensação vai piorando durante o jogo, porque vai fazendo cada vez menos sentido ir detonando os bichos. Lá pelo quarto ou quinto você já tá com pena dos desgraçados. Eu nunca tinha sentido isso num jogo. Mas pode ser só a idade que está me deixando mole, não sei.
Mas o que importa é que o jogo desperta esses sentimentos, entende? Ele te faz pensar, e considerar seus atos. Porra, isso é mais do que um jogo. Ou vai dizer que você fica pensando sobre cada soldadinho nazista que cai no Medal of Honor?
Mas ok, continuando. Você tem que acabar com a raça do colosso. Levanta a espada de brinquedo de novo, e ela vai iluminar um ponto frágil no bicho, onde você vai ter que enfiar sua espada repetidas vezes, até o bicho dar um puta gemido e cair. As batalhas são intensas, pra contrastar com a tranqüilidade até chegar nelas. O bichão se contorce, balança e tenta te tirar das costas dele de qualquer jeito. Você fica lá feito uma pulga num cachorro, se segurando e sacudindo de um lado pra outro. Chega uma hora que você finalmente derruba o bicho, e é quase inacreditável que um bosta como você tenha conseguido derrubar um negócio daquele tamanho. Aí você desmaia e vai parar no templo de novo. Tu acorda e logo fica sabendo que tá na hora de ir matar o próximo colosso, enquanto a sua mina continua meio morta lá.
Bichos cada vez maiores pra você furar o bucho.
O jogo inteiro é isso. Sem reviravoltas mirabolantes, sem pegar novas espadas ou armaduras, sem conhecer personagens novos, sem trocar uma idéia com o carinha do item shop. E sem saves, o jogo salva automaticamente pra você, depois de cada colosso morto.
Quando eu entendi que o jogo era só isso, foi quando eu entendi que o jogo não era pra ser jogado, numa sucessão de desafios a serem vencidos pra chegar ao fim. Eu entendi que cerne do jogo era a experiência de jogar. Por isso o cenário sem distrações, as longas cavalgadas até achar cada colosso, o tempo de reflexão para decidir como chegar em cada bicho, o dilema moral de matar uma criatura que não fez nada pra você. E a incerteza do que acontece no fim do jogo.
Isso é mais do que um jogo, é um filme, um drama, um épico que você vai fazendo acontecer com o seu joystick e com suas ações. O ritmo de jogo é diferente do que estamos acostumados. É contemplativo, te dá tempo pra pensar e escolher o que fazer. Não existem estatísticas, barrinhas de tempo, level, xp ou qualquer outra coisa que te distraia ou estabeleça outros objetivos. Tudo é muito simples. Um jogo pra ser sentido.
Sinto que esse aqui que tá voando vai ser um pouco mais difícil de abater.
E é por causa desse tipo de jogo que eu continuo jogando, e agüentando os Need for Speed e os Fifa que tem por aí. No meio de uma caralhada de jogos repetitivos, aparecem essas jóias de vez em quando, que imediatamente se elevam sobre os demais jogos, e se tornam o que eu falei lá no começo: mais do que um jogo, uma experiência.