Maus, a Internet e o Acúmulo Compulsivo
Acabo de me dar conta: Eu trato conteúdo digital do mesmo jeito que um judeu que escapou dos campos de concentração tratam comida, roupas e outros recursos; a necessidade constante de estar preparado caso, na próxima curva, tudo dê errado. É o pensamento que te força a se “precaver” de uma realidade que, até onde tudo indica, jamais vai acontecer… Mas não adianta argumentar.
Sobreviventes do nazismo, as primeiras gerações que cresceram com a internet e as pessoas com compulsão acumulativa apresentam apenas variações do mesmo comportamento. Pode parecer estranho falar assim, mas é verdade… Não que isto aqui seja uma proposta acadêmica séria, mas se servir pra alguém (E pra mim mesmo) entender melhor a coisa toda, que seja. O “sintoma” é o mesmo: Guardar e manter coisas porque talvez você precise dela. Em duas horas, amanhã, daqui uns anos, quando os filhos forem mais velhos. Não importa. Essa manutenção de um arquivo independe do quê está sendo arquivado: Uma embalagem de sorvete quebrada, um álbum em .mp3, comida com longa data de validade.
Longe de mim fazer uma análise de Maus (Até porque já fazem quase 30 anos), mas o comportamento de Vladek, pai de Art Spiegelman, autor da obra, é o mesmo que eu tenho, mas com coisas diferentes: Vladek guarda comida e faz de tudo para não gastar dinheiro, eu guardo gifs que gostei e faço questão de fazer backups. É claro que, nesse meio, há o pequeno detalhe do nazismo e dos campos de concentração, além de toda a subjetividade e parcialidade da obra em si, mas independente de motivações e da divisão o-que-é-trauma-o-que-é-característica, o comportamento é o mesmo: Vladek e eu não somos diferentes de quem (Literalmente) enche a casa de peças de roupa velhas e eletrodomésticos comprados e nunca usados.
Estou num momento de iluminação, mas vamos descer até a lama: Quem, assim como eu, cresceu com a internet “sabe” que a internet é uma “coisa”. Uma coisa mutável, que foi criada e que, eventualmente, vai acabar. O simples fato é: A gente cresceu com a internet, mas o mundo sem a internet é uma realidade para nós. A maioria das pessoas com até seus trinta e poucos anos pôde contar com a internet pra quase tudo: De trabalho da escola até arranjar emprego, mas papel carbono e pesquisar na biblioteca não são técnicas ultrapassadas. O nosso mundo é híbrido, diferente das gerações antes da nossa que, ou não tiveram a internet e a informática presente ou fizeram parte do pequeno grupo de pessoas que de fato criou a internet e a informática: Gente mais velha que nós literalmente sabe tudo sobre o mundo digital ou simplesmente aprendeu a lidar (Ou não) com essa coisa nova que surgiu. Tal qual, para várias gerações antes disso, o automóvel era uma coisa nova que surgiu.
Esse hibridismo que a nossa geração vive foi moldado por uma tecnologia que, na maior parte do tempo, era uma porcaria. Tal qual toda nova tecnologia é no começo. A gente teve que lidar com o 386, conexão discada e CDs, e a verdade é que demorou anos pra isso tudo se firmar (Além dos anos que levou pra se tornarem comercialmente possíveis). Computadores pessoais, no começo, eram uma porcaria. A internet, no começo, era uma porcaria, e enquanto a nossa geração crescia, todos esses recursos melhoravam, e iam, aos poucos, suplantando suas versões analógicas. Qualquer pessoa da minha idade pode narrar facilmente a evolução dos aparelhos celular ou a queda dos palmtops, pode comparar facilmente as diferenças de gráfico num NES e num PS4, ou ainda achar um absurdo a fatídica “a gente tá sem sistema” sem notar que é exatamente a mesma coisa que não ter 3G onde você está.
A minha geração acha que a internet pode acabar amanhã. Exatamente do mesmo jeito que Hitler pode decretar um novo ato de perseguição amanhã. Do mesmo jeito que, amanhã, pode ser que a sua tia Cotinha vá precisar daquele jogo de louça pra chá porque a rainha da Inglaterra vai visitar o país e resolver dar uma passada por Sobradinho, na Bahia.
E, já que pode acabar, é melhor a gente se precaver. É melhor guardar, não vai ocupar tanto espaço assim, e se der embora e depois precisar vai ter que comprar outro. E pode ser que nem tenha outro igual ou que esteja muito caro.
Ridículo. Eu sei que é ridículo. Eu acho um absurdo guardar metade de um pacote de cereal e tentar devolvê-lo no mercado, do mesmo jeito que eu acho ridículo abarrotar a casa com um monte de lixo ao ponto de, literalmente, não poder andar dentro da mesma. E, ainda assim, cá estou eu, salvando foto, vídeo, música e o raio que o parta. E olha que eu já melhorei muito de uns dois ou três anos pra cá. O lixo da minha geração não é comida ou brinquedo antigo, é digital.
O que é mais incrível, pra mim, é que quando eu vejo gente mais nova que eu não tendo o mesmo comportamento, eu também acho um absurdo. Do mesmo jeito que Vladek acha um absurdo o filho desperdiçar comida. Eu fico puto e chamo de “mimado” quem não baixa música, quem faz streaming de série (Ao invés de torrent comprar o DVD original do jeito que todo mundo deveria fazer), quem não tem aquela coleçãozinha de putaria. No meu mundo a internet pode ficar lenta sem motivo nenhum, pode ter uma pane mundial e perder totalmente a conexão, pode ser censurada pelo governo. Meu computador pode ser atacado por um hacker e, se eu não tiver os meus arquivos num HD externo ao invés da nuvem, eu me fodi.
Parte de mim sabe que isso tudo é um fatalismo exagerado e que as chances disso tudo acontecer são mínimas: É a que está falando aqui hoje. Porém, a outra parte de mim, normalmente mais forte e mais presente, me diz que minha experiência com computadores e a internet foi assim e que pode muito bem voltar à ser. Auschwitz pode ser um museu hoje, mas pode muito bem ser reativado semana que vem, e a menos que eu estoque enlatados, mel e carne seca, eu vou morrer. Eu tenho que provar pro resto do mundo que, se tudo der errado, eu consigo sobreviver. Talvez até ajudar outras pessoas a sobreviverem. Eu e meu pendrive bootável podemos salvar centenas, milhares de outros que não acreditaram nos sinais e alertas do fim do mundo.
E esse medo irracional, muitas vezes subconsciente, se mistura com uma outra parte, bem menor mas muito real, que sabe, com a certeza do fato, de que apesar de improvável, parte desse apocalipse não só é possível, como pode ser executado com rapidez e eficácia. A internet, tal qual conhecemos hoje, pode ser alterada com relativa facilidade. Vigilância e coleta de dados são realidade tal qual a possibilidade de uma guerra internacional, e enquanto eu, pessoalmente, não sou de grande valia nem pra um sequestro virtual nem pra prisioneiro político, outras pessoas que são usam a internet pra pagar as contas, ver notícias e se comunicar com o resto do mundo tanto quanto eu.
Eu sei que essa história de guardar arquivos digitais é um exagero, e como eu disse, muitos dos meus hábitos mudaram nos últimos anos, mas pra mim a internet é aquele treco que eu vi aprender a andar: Hoje já corre, salta, dá pirueta, mas cair e ralar o joelho ainda é uma possibilidade, e essa reticência, essa tensão de que “as coisas podem dar errado” é extremamente difícil de perder. Quando li Maus pela primeira vez, alguns anos atrás, eu me irritei com Vladek do mesmo jeito que Art se irritou, mas ao mesmo tempo entendi melhor do que Art (Ou ao menos melhor do que o Art do quadrinho) o porque do pai dele agir daquela forma… Hitler não vai voltar, mas outro (Novo) nazismo é possível. Distante, mas possível. Acontece que eu não sei se há limite saudável para o preparo, para a prevenção. Enquanto isso, o fato é que há menos e menos espaço dentro de casa, o quintal já está lotado, a garagem também e é mais fácil pedir uma pizza que abrir a porta da geladeira.
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