Menina Má (William March)
Mês passado gastei quase metade do meu salário em livros. Não foi pouca grana não, mas valeu a pena. Literatura, além de entretenimento, também é um investimento intelectual, mantém o cérebro ativo e te arranca da zona de conforto. Comecei minha jornada literária por Menina Má, clássico de 1954 do americano William March. Seu primeiro e único best-seller, que inspirou desde uma peça da Broadway à dois filmes (Um bom, do final da década de 50 e um péssimo, dos anos 80), e conta a história de Rhoda Penmark, uma criança com traços de personalidade no mínimo esquisitos e sua mãe, Christine, que tenta a todo custo compreender o que se passa pela cabeça da garota.
William March acertou em cheio no romance, que começa com ares agradáveis, narrando a ida dos alunos da escola local para celebrar as férias em um piquenique na praia. Rhoda é bela, adorável, independente, conquista a todos com seus maneirismos e covinhas, além da impecável educação mas, como a própria mãe observa, tudo nela é artificial e calculista. Menos a ganância, que demonstra pela primeira vez sob o olhar do leitor ao perder um concurso de caligrafia para Claude Daigle, menino mimado pela mãe, de aspecto e personalidade fracos. Quando ele se acidenta no passeio escolar e a medalha que ganhou no concurso some, Christine se sente inquieta pois, ao mesmo tempo em que acredita que a filha teve algo a ver com o caso, não quer admitir essa possibilidade. Se recusa que possa haver maldade e frieza entranhadas em um coração tão jovem.
Gradativamente, o thriller vai se tornando claustrofóbico e sufocante. A escolha de afastar a presença do pai, Kenneth, e mantê-lo apenas em lembranças e cartas — ele está trabalhando fora do país –, deixa a narrativa ainda mais interessante porque obriga Christine a conviver com a personificação do seu medo e desafiar sua passividade natural, tornando-se agente ativo da própria vida. Apenas ela e a filha no amplo apartamento. Encarando a solidão, o tédio e o estranhamento que há entre as duas. O alívio cômico se encontra na persona de Monica Breedlove e seu irmão Emory, vizinhos fofoqueiros que praticamente adotam a família como sua. A constante presença do jornalista investigativo, Reginald Tasker quebra a rotina de silêncio ensurdecedor em que vive a dona de casa. É ele quem ajuda a mãe desesperada a mergulhar na mente perturbada de Rhoda, através de materiais sobre diversos psicopatas de carreira que demonstravam, desde cedo, finos traços de maldade.
O plano mais aberto, abordado nos primeiros capítulos, nos quais acompanhamos as maldades e indiferença de Rhoda, a desconfiança da mãe e a adoração da família Breedlove pelos Penmark, é deixado de lado com o desenrolar da história. Em um certo ponto, o autor foca majoritariamente em Christine que, de coadjuvante, se torna a grande protagonista. Solitária, escreve enormes cartas ao marido, que jamais são enviadas, recheadas de desespero, dúvidas e medo do futuro. Nelas, são revelados segredos familiares e suspeitas inconfessáveis. Como um desabafo que não pode vazar, algo que não pode se materializar se dito em voz alta, a mulher extravasa sua frustração, seu pavor e impotência diante da situação que se apresenta diante dela. Da solidão, falta de afeto da filha e a culpa, inerente da maternidade, por tudo o que deu errado. E que dará, caso continue fechando os olhos para o que há a sua volta.
Há ainda Leroy Jessup, o zelador do edifício, que é um personagem a parte. Um espectador da rotina dos moradores do bairro. Logo percebe-se que ele reconhece muito de si na criança, mas não tem metade de sua perspicácia. Conduzido pela inveja dos mais ricos e pela suposta injustiça da vida miserável que leva, é uma espécie de nêmesis da pequena garota, tendo a necessidade de causar estragos a quem quer que seja, mas grosseiramente, sem discrição. Fica obcecado ao perceber que não há qualquer traço de humanidade em Rhoda e faz um contraponto psicológico interessante sobre os níveis de maldade que existem no ser humano. Afinal, uns são piores do que outros, tanto na extensão do que fazem, quanto pelos motivos.
O livro te suga pra dentro de suas páginas. Uma vez que começa, é um caminho sem volta. Parar no meio não é uma opção. Enquanto leitor, só te resta devorá-lo. Tanto Rhoda quanto Christine, em suas diferenças, são personagens intrigantes e, por isso, cativantes. A cumplicidade que geralmente une mães e filhas, as afasta de forma que só haja sombra nessa relação. O final surpreende, mas quando paramos para pensar no contexto é o único possível.
A edição da Darkside é muito bonita. Material para colocar no topo da estante e exibir. Dá gosto de ler um livro tão lindo. Quando eu entro numa livraria e me deparo com suas edições, faço carinho, sinto o cheiro e folheio para ver as belas ilustrações. Trazem, junto com a Aleph — esta mais voltada para ficção científica do que suspense/terror — os melhores títulos de terror e fantasia, com o maior capricho possível. Vale cada centavo. Cada metade do meu salário. Chega logo, dia 1º, porque a fila ta andando e eu quero mais!
Menina Má
The Bad Seed
Ano de Edição: 2016
Autor: William March
Número de Páginas: 272
Editora: Darkside
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