Não importa o que é, só preste atenção
Tratando-se de consumo de material (Por material entenda-se tanto “entretenimento” quanto “instrução formal”), um debate que martela constantemente meus pensamentos há vários e vários anos é entre Quantidade vs Aprofundamento, e essa é uma questão interessante porque Qualidade é um fator consequencial e não primário.
Não lembro realmente onde foi que li (Ou até mesmo se foi realmente algo que li), mas o resumo do pensamento era: “Olha só o tanto de obras incríveis que fulanos fizeram há ______ anos atrás! E eles não tinham nem um décimo do que nós temos hoje em termos de referência: Eles leram menos livros que nós, ouviram menos músicas que nós… E as obras deles estão aí até hoje, são referência e tudo mais”.
Tirando o fato que esse pensamento deixa de fora todas as questões de documentação e conservação de obras, e é um tanto reducionista ao tratar a produção como diretamente relacionada ao consumo, o fato é: Todo mundo do passado tinha realmente menos material que nós, do presente. E, claro, no futuro teremos mais do que temos hoje. O interessante é que o fator decisivo nessa coisa toda é o como o consumo desse material é feito: Quantitativamente ou Aprofundadamente.
E digo “aprofundada” porque o fato vem diretamente do tempo dedicado a tal consumo. Poder-se-ia dizer que o tempo dedicado a absorver, analisar e entender uma obra é uma questão de qualidade: Quanto mais tempo você “gasta” nela, maior proveito você tira da mesma… O problema é que isso não é verdade, vide o tanto de vezes que você ouve uma música e, quando vai ver a letra, vê que não fazia ideia do que a tal música falava (E ela sequer precisa sem em outro idioma que o seu próprio). Porque “tempo” única e exclusivamente é justamente isso: Uma quantidade de horas, dias, anos gastos em alguma coisa, e não a atenção dedicada a tal tarefa. “Aprofundamento” é que requer esse cuidado: Racionalizar a obra (Mas sem deixar de lado seu impacto não racional), pesquisar seu contexto, conhecer mais do autor, procurar jogos de palavras, estudar sua métrica e estética e, no fim das contas, tirar um sentido disso tudo, seja esse sentido qual for.
E a real é que cê pode fazer isso com absolutamente qualquer obra: Inclusive ela pode ser velha ou nova. Enquanto que Aprofundamento leva tempo e repetição, o fato é que qualquer obra pode te dar o resultado que você quer… Bem, não qualquer obra, mas a especificidade é irrelevante: A mesma conclusão – digamos, que temos que ter cuidado com a ambição – pode ser tirada do mito de Ícaro ou, sei lá, de um episódio de Thomas e Seus Amigos.
A afirmação que a produção depende do quanto se consome primeiro é tão errada quanto a afirmação de que apenas uma série limitada de obras pode levar ao mesmo tipo de consumo e, o mais importante, ao mesmo tipo de produção posterior: O que determina é o quanto alguém está disposto a colocar de esforço (E tempo apenas por consequência) em entender uma obra. O fatídico “xis” (“Chis”?) da questão é que antigamente havia menos obras para escolher. Havia menos concorrência por esse tempo e atenção, logo a falácia de que o que importa são os números: O que importa é a resolução de fazer, de começar, e, em segundo lugar, a de saber escolher no que você irá depositar seu tempo e energia para consumir… Talvez cê consiga tirar leite de pedra, vai quê?
Por fim, aí vem a Qualidade: Um bom produto posterior não requer uma bibliografia extensa, nem mesmo uma bibliografia boa, mas requer sim uma bibliografia estudada, desconstruída, conhecida, internalizada. Requer mais que o conhecimento superficial tanto quanto requer mais que a familiaridade: Não adianta saber todas as falas de um filme se você não sabe o que elas significam. Mesmo que esse significado específico seja só seu. É isso que gera boas obras como consequência, é esse Aprofundamento numa obra – depois em outra, em outra e mais outra, de preferência contrastantes – que te permite, primeiro como consumidor e depois como autor, a fazer um bom trabalho, a criar algo bom.
Não tô dizendo que é fácil, o que eu tô dizendo mesmo é que titularidade não importa. Que enquanto qualidade pode ser mensurado, impacto não pode. Que você pode ter resultados excelentes, mesmo com a mais absoluta porcaria como referência, contanto que você se dê ao trabalho de esmiuçar essa bosta com força e vontade, vez após vez. E que isso tudo ainda pode acabar numa obra ruim mesmo sem você ter feito nada de errado. A culpa ainda é sua, mas você tá no caminho certo.
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