O ladrão que roubava troco
Tudo aconteceu na década de 80, mas poderia bem ser nos dias atuais. O Rio de Janeiro acordava de manhã e descobria mais um crime: O arrombamento e furto da Quitanda Dona Margarida, no então recente bairro de Padre Miguel. Seria outro crime comum, não fosse o que o ladrão levou: Apenas as moedas, e notas baixas de Cruzeiro.
A investigação da Polícia Civil não levou à grandes revelações, apenas à mais confusão: Marilene Aparecida de Campos, a Dona Margarida, confirmou à polícia que nada mais fora levado de sua quitanda além das notas e moedas de valor mais baixo, deixando toda a mercadoria, as frutas, legumes e os ovos, deixando tudo, incluindo as notas e moedas de maior valor, para trás.
Segundo Dona Margarida o prejuízo total do roubo fora de Setenta e Oito Cruzeiros, e Vinte e Nove Centavos, o equivalente à apenas Dezessete Centavos de Real, dos mais de Mil e Setecentos Reais presentes no caixa da loja… O único outro prejuízo, segundo Dona Margarida, fora o cadeado arrombado pelo ladrão: Nem mesmo um calendário do ano, brinde da loja, fora levado.
O crime foi noticiado apenas num jornal de circulação local, e devido ao baixo valor roubado a investigação policial foi fechada. Ainda assim, o crime ficou conhecido em Padre Miguel. Alguns diziam que Dona Margarida havia esquecido de fechar a quitanda na noite anterior, e havia conferido errado o valor em caixa; outros assumiram que fora um roubo motivado pelo uso de drogas. A verdadeira motivação do assaltante só viria a ser conhecida muito depois, mas não antes de mais crimes acontecerem.
Havia apenas sete meses desde que o Governo Figueiredo, o último do governo militar, havia retirado os centavos de circulação no país, numa tentativa infrutífera de controlar a alta da inflação que assolava o Brasil na época, e o Governo do recém-eleito Presidente José Sarney ainda estava às voltas com a restituição da República no País, fazendo com que parte da população se encontrasse em dificuldades financeiras.
Apenas quatro dias depois, novamente a Polícia do Rio de Janeiro respondeu à um chamado de roubo. O valor levado: Doze Cruzeiros, e Quatro Centavos. Novamente um boletim de ocorrência foi preenchido, novamente pelo proprietário de um pequeno negócio, num bairro afastado do centro, e novamente não houve nenhum outro dano à propriedade, como também o valor levado era menor que o disponível no local.
Foi o suficiente para atiçar a imaginação da população, mas não da Polícia, que dispensou a segunda ocorrência como um trote, uma brincadeira de mal gosto, por parte dos moradores de Padre Miguel.
Nas duas semanas seguintes, quatro outros comércios locais foram assaltados, sempre do mesmo jeito, sempre levando apenas as cédulas e moedas menores. A Polícia não mais respondeu aos chamados das vítimas, e nos dias que se seguiram grupos de vigilância foram formados pela comunidade para fazer o trabalho que o Estado faltava em prover.
Após trinta e nove dias os mutirões cessaram, já que nenhum novo crime ocorrera e a população estava segura que a ameaça havia cessado. Foi um engano. Nos dois meses que se seguiram Cinquenta e Quatro vendas, padarias, mercearias, lojas de doce, barracas de cachorro quente e até mesmo uma quermesse foram assaltados. Os danos nunca passaram de Cento e Vinte Cruzeiros por vítima, mas a somatória total já ultrapassava Cinco Mil e Quinhentos Cruzeiros.
Em valores atuais, o ladrão não havia roubado nem mesmo Vinte Reais, mas na época não era piada alguma: A Polícia do Estado do Rio fora forçada a tomar ações, e a garantir em publicação oficial que os crimes seriam solucionados, e o culpado posto atrás das grades.
Na manhã seguinte ao Sexagésimo roubo, enfim os acontecimentos ganharam o conhecimento do grande público da Capital Carioca: O Globo, O Dia e o Jornal do Commercio correram em suas páginas a incrível estória da mente criminosa que assolava o Rio de Janeiro, para roubar centavos.
Rapidamente a vida imita arte, e em poucos dias novos casos pipocavam em toda a Cidade do Rio de Janeiro, e a Polícia já não tinha mais escolha a não ser responder à todas as ligações, à todas as chamadas… Enquanto isso, em Padre Miguel, o que começara como um acontecimento curioso e passara à uma ameaça real agora era motivo de orgulho para uns – que diziam que Ladrão do Troco Original era seu – e desespero para outros, que continuavam a ter seus comércios e casas invadidos na calada da noite, para acordar de manhã, e não terem mais parte de seu dinheiro ganho Honestamente.
Seis meses se passaram desde que a Quitanda Dona Margarida fora invadida numa noite de terça-feira, e os valores desaparecidos agora somavam, em toda a cidade, a exorbitante quantia de Três Milhões de Cruzeiros, quase Cinco Mil Reais. Não havia mais como saber quais eram os valores levados pelo assaltante original, mas o “Ladrão do Troco” agora era personagem popular na cidade, e começava a ganhar fama nacional.
Veio a Virada do Ano, e no período de festas, o “Centassalto” como ficou conhecido, triplicou nos pontos turísticos da cidade, atingindo o valor estimado recorde de Dezenove Mil, Setecento e Quarenta e Seis Cruzeiros, e Noventa e Um centavos em um Único dia: Primeiro de Janeiro, de Mil Novecentos e Oitenta e Seis. A Polícia já esperava o aumento na atividade criminal no período de maior circulação monetária no país, e já se preparava para uma operação em larga escala às vésperas do Carnaval Carioca.
A Operação, porém, nunca viria.
Após o recorde no primeiro dia do ano, os muitos copiadores do Ladrão do Troco “se aposentaram”: Entre primeiro de Janeiro e a próxima segunda-feira, dia seis, os relatos de assaltos de baixas perdas na Cidade do Rio caíram em mais de Seiscentos por cento e com o fim do período de festas foi-se também a novidade e a algazarra que circundavam o roubo de pequenos valores. Em outras palavras, a moda, morreu, e com ela foi-se a atenção da mídia.
Em Padre Miguel entretanto, epicentro da modalidade, os crimes continuaram no mesmo ritmo e com as mesmas características com as quais surgiu, e os moradores não tinham dúvida: O Ladrão de Troco continuava na ativa, e agora, finalmente, a Polícia do Rio de Janeiro poderia enfim focar seus esforços em capturar o criminoso verdadeiro.
O Carnaval de 1986 transcorrera normalmente. Nas duas semanas seguintes apenas um microempresário de Padre Miguel relatou ter tido seu comércio, uma banca de jornais, assaltado, e a quantia levada fora a menor desde então: Setenta e Dois Centavos de Cruzeiro, menos de Um Real. A Polícia agora instaurou uma investigação completa, e, dizem colheu provas esclarecedoras na cena do crime. Em 28 de Fevereiro veio a Notícia: Estava decretado o fim do Cruzeiro, e a implantação da nova moeda brasileira, o Cruzado, que traria consigo o retorno da impressão de moedas centavos.
Em Cinco de Março, a reviravolta: Numa agência do Banco Nacional, no centro da Cidade do Rio de Janeiro, dois suspeitos foram presos pela Polícia, após tentarem trocar uma grande quantidade de cédulas e moedas baixas cada um. Levados para a Delegacia de Polícia, os suspeitos passaram por interrogatório, e tiveram suas digitais comparadas com as da cena do crime de semanas antes. Horas depois, um dos suspeitos foi liberado sem nenhuma acusação; o outro foi mantido em prisão preventiva. No dia seguinte a Polícia fez um Comunicado Oficial.
Rosilda Aparecida do Nascimento, a Tia Rô, foi presa e acusada de ter, por meses, invadido e assaltado pequenos comércios de Padre Miguel, Realengo, Bangu e Senador Camará, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Tia Rô era figura conhecida em Padre Miguel, e amiga pessoal de várias de suas vítimas: Ela era vendedora de faixas e camisetas de protesto contra o Governo na região de Moça Bonita, sendo conhecida pelo jeito alegre e descontraído com que tratava seus clientes, e por sempre fazer brincadeiras bem humoradas com os colegas de profissão e comerciantes locais.
Após ser presa, Rosilda, que por ironia compartilha o segundo nome com sua primeira vítima, confessou os crimes. Segundo ela, com a retirada dos centavos em 1984 seu negócio começou a sofrer enormemente com a crise, e foi perdendo clientes: Diz ela que seus clientes preferiam estocar mantimentos e itens de necessidade pessoal a continuar a protestar contra as reformas econômicas e sociais, passando a vender apenas para empresas e grupos privados. Aos poucos, Rosilda se encontrou sem dinheiro para dar de troco aos poucos membros da população que se interessavam, e sentindo que estava traindo seus ideais, resolveu recorrer ao crime para continuar nos negócios.
Rosilda foi presa, ficando na penitenciária até Junho de Mil Novecentos e Noventa e Três, quando passou para liberdade condicional. Ela foi encontrada morta em seu quarto alugado, numa pensão no bairro da Paciência, em Julho do mesmo ano. Segundo moradores do local, Rosilda frequentemente reclamava da situação financeira em que se encontrava, da saudade de seu bairro natal e estava desiludida com a situação do país. O relatório oficial do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, o IML, aponta como causa da morte um mal estar súbito seguido de infarto fulminante. Os moradores de Padre Miguel que a conheciam, entretanto, diziam que a causa de sua morte fora desgosto.
Mais de trinta anos se passaram desde que o Ladrão do Troco aterrorizou os habitantes cariocas, e o trágico fim de Rosilda Aparecida do Nascimento passou despercebido pela maioria. Menos de um mês após sua morte seria instaurado o Plano Real, que viria a modificar a economia do país: Talvez Tia Rô pudesse estar viva, e ter se regenerado… A Única Certeza porém é que o Crime, Não Compensa.
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