O Repente é muito melhor que o Rap

Música segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Os últimos vinte anos foram, sem dúvidas, movimentadíssimos na história do mundo: Nunca antes nada foi tão grande, potente, poderoso quanto é hoje. Apesar de suas raízes datarem de muito antes do que a mídia mainstream alcança, o rap só ganhou o lugar de destaque que tem hoje na década de 90, quando derrotou o rock na eterna batalha pelo ouvido do mundo.

O que começou com tribos africanas começou a tomar forma na década de 20, nos EUA, ganhando força na década de 70 e finalmente chegando ao ponto em que todos os saudosistas gostam de lembrar, com os negros pobres da América proclamando que não mais se sujeitariam à vida que levavam nos guetos e subúrbios: O rap era o novo blues, com a polícia no lugar do capataz e as ruas dos distritos ignorados pelo resto da sociedade no lugar dos campos de algodão.

Hoje, entretanto, o rap já tem uma nova face, e o que antes eram gritos de guerra pré-caça agora são brados ufanistas numa sociedade em que a ostentação é a palavra-chave. O mundo do rap está muito próximo de sua quebra da bolsa de 1929, mas isso é outro assunto: Mais do que nunca, o rap está em lugar de destaque. O rap é pop, até mais do que a própria música pop.

E do outro lado tem o repente.

Ainda que sua influência e difusão mundial sejam muito menores que as do rap, ambas tem muito em comum. Diferente do rap, o repente tem origens na trova europeia, mas também só floresceu mesmo no Novo Mundo, crescendo no século XIX e evoluindo nos últimos cento e tantos anos. Tal qual o rap, o repente não se apoia em instrumentos musicais, ainda que estes o acompanhem, mas sim na “letra” que o repentista, tal qual o rapper ou MC, canta. Ambos os gêneros têm diversos estilos, métricas, técnicas e formas diferentes, sempre com ênfase na mensagem a ser passada e a forma estética que isto é feito.

Acontece que o repente é muito mais foda que o rap.

Enquanto o rap é uma epopeia em direção a superação, o repente é a cantoria do infortúnio popular. O rapper de sucesso rima sobre quantas piranhas comeu em seu superesportivo no clube ontem à noite; o repentista rima sobre como dibrou o corno pra levar a senhora na quermesse. O rapper lota casas de shows open bar e o repentista para a galera no metrô para ouvir a música. O rap se distancia de seu ouvinte, de seu público, ao colocar o artista numa posição almejada por todos, mas inalcançável para a maioria (Ainda que muitas de suas músicas sejam justamente sobre um ninguém conseguir todo o sucesso do mundo), ao passo que o repentista, mais que todos, é povo, e mostra que mais que dinheiro, fama e sucesso, o importante é viver uma boa vida.

Os dois cantam sobre a ilegalidade na vida: Drogas, roubos, coronelismo, gangues, fraudes, cangaço, tráfico. O problema é que enquanto o rapper de sucesso é o chefe do morro, o repentista é o garoto que sonha com tênis de basquete. O rap cantava sobre como era difícil a vida sendo um pária na sociedade, mas isso não existe mais porque ou o rapper morre numa briga entre gangues, antes de fazer música, ou vira o cafetão que sempre almejou ser: Não há mais o meio termo. O rap é feito de extremos nos quais um não existe e o outro se destaca acima de todos os outros. O repente é sobre tentar se destacar num mundo em que todos não existem. E que muitas vezes falha.

Um beijo, Daniel!

O nível da vitória é completamente diferente porque o nível da vida como um todo é diferente, e isso significa dizer que as derrotas são diferentes. Um velho exemplo pra outro assunto de debate é quando um rico vai à falência e um pobre fica sem dinheiro: Pobre não vai à falência, e o “ficar sem dinheiro” é simplesmente algo corriqueiro, ainda que ruim, mas mais importante ainda, passageiro. Perder no rap é perder seu status, ou como diria GTA San Andreas, perder respeito. Perder no repente é não ter dinheiro pra levar a guria pra sair e ela sair com o outro. Não é só uma diferença temática: No rap uma batalha é uma batalha com perdedor e vencedor, no repente os dois lados dão às mãos e o “perdedor” congratula o vencedor. O repente é magnânimo, o rap é a sobrevivência do mais forte. O ser humano é um animal social; o isolamento leva à decadência e, finalmente, à morte.

Em termos de técnica, de requisitos musicais, ambos são comparáveis, uma vez que a função é a mesma: Qual a melhor forma de transmitir X, dentro de tal batida musical? Entretanto, o jeito que tal transmissão é feita é diferente, não porque a métrica seja diferente ou porque a instrumentação seja diferente, mas por uma questão de vocabulário. Gírias, regionalismos, neologismos e todos os demais artifícios de linguagem possíveis estão presentes tanto no rap quanto no repente, mas apenas no último é permanece sendo uma forma de diferenciação. O repente se concentra no nordeste e no sul do Brasil, e se você pegar alguma música pra acompanhar a letra a chance de que não vá entender absolutamente nada é grandíssima. Até mesmo pra quem mora nestas regiões do país tem coisa que é incompreensível, mas atualmente o rap tem de lidar com o fato de que, por ser popular, qualquer um sabe o que está sendo dito alí. O rap nunca foi feito pra WASPs, mas é popular com eles também. Popular ao ponto de não só de essas pessoas entenderem o que é dito, como dizerem elas próprias. Não que tenha algo de errado nisso (E olha que tem muita gente que acha que é), mas nunca foi o objetivo, e gostando ou não isso tira do público-alvo original o que antes era uma forma de divisão social “positiva”.

E aí entra-se em outra questão: O rap é global, o repente não. Faz repente e gosta de repente quem está, de uma forma ou de outra, inserido num contesto similar ao repentista. O público passa a fazer repente porque é igual ao repentista, já o rap é feito por gente completamente diferente uma da outra. De novo, o problema não é fazer, mas sim o fato de que fazer significa dividir um gênero que foi criado originalmente para unir gente na mesma situação de merda. A polivalência que aumenta a cada dia no rap não existe no repente, logo este se sai melhor em sua função: Ter um canal de exposição entre artista e público. E isso dá tão certo que enquanto o rap é criticado por gente de dentro do rap, o repente se estrutura e fortalece como uma comunidade.

Longe de mim indicar o Parafernalha para vocês, só estou mostrando que existe.

No final das contas, enquanto o rap perde força por se dividir internamente e por se distanciar cada vez mais das bases que o alçaram onde hoje está, o repente mantém sua estrutura primordial, dando voz ao que o povo/público passa, e consequentemente dando continuidade à sua própria história. Isso não quer dizer que o rap deixará de existir, só que será diferente: Talvez seja algo bom, mas definitivamente não voltará a ser a música de protesto que já foi… O rap se aproxima mais de suas primeiras versões, nas quais o que importava era a diversão: O rap nunca teve voz enquanto era diversão.

O repente é divertido pra quem está de fora e o vê como um gênero popular, mas para aqueles que estão envolvidos no gênero, é o que o rap já foi: Uma forma de divulgar as dificuldades pelas quais uma parte da população passa; uma forma de protesto e, acima de tudo, de mostrar que mesmo contra ditas dificuldades, é possível sim vencer na vida… E, tantas e tantas vezes, isso se faz se divertindo, mesmo contra todos as probabilidades.

Enquanto o rap vira ocupação imatura, o repente é uma forma de levar a vida sorrindo.

PS: Vale ver estes cinco vídeos (1, 2, 3, 4 e 5) da TV Escola, abordando tanto o repente quanto sua influência no rap no Brasil.

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