Que haja rock
Era um fim de tarde calmo e ensolarado. O sol das cinco da tarde passava pelas janelas e iluminava cabeça e ombros de uma pessoa dentro do cômodo, sentada em uma poltrona reclinável. Era um senhor de avançada idade, que se recostava placidamente, rosto tranquilo, quase imóvel a não ser pelos dedos indicador, médio e anular da mão direita que subiam e desciam sem parar no apoio para o braço, marcando o ritmo da música alta que vinha de um arcaico aparelho em um dos cantos do ambiente. Um velho CD girava em altas velocidades dentro da máquina, e sobre ela havia uma capa e um encarte abertos, que há poucos momentos reviveram velhas lembranças. O velho levantou e caminhou lentamente até a janela, curvando a cabeça e os olhos para baixo para contemplar a vista da cidade, os veículos zunindo em alta velocidade cento e três andares abaixo, onde o sol já não alcançava. O idoso começou, por algum motivo, a pensar em seu aniversário – que era no dia seguinte – e em como o tempo passava rápido, sem dúvida. Incrível, pensava ele, como o ano de 2074 já estava quase na metade.
No dia seguinte, a família veio para as comemorações. Filhos, amigos e o único neto. No início da noite, quando aqueles restantes conversavam e bebiam na sala, o velho se retirou para um breve descanso sob o pretexto de dores nas costas; sentou na habitual poltrona, sentindo o corpo relaxar depois de horas cumprimentando os visitantes, contando histórias e dando todo tipo de conselhos. Poucos minutos se haviam passado na calmaria do quarto, quando a porta rangeu e abriu devagar, com uma pequena figura parada no batente, incerta se deveria ou não entrar. “Anda, pode entrar”, disse o velho, presumindo acertadamente quem era. Seu neto andou devagar e sentou no chão, na frente da poltrona. Tinha sete anos, cabelos bem penteados e um ar de inocência e esperteza, características raras nas crianças de então. Olhou para avô, que lhe retribuiu o olhar, em uma conexão silenciosa mas verdadeira e ambos se sentiram bem pela companhia um do outro.
“Vô”, começou o menino, “posso perguntar uma coisa?”
“Claro.”
“De onde veio o rock?”
O avô se inclinou para frente, interessado na pergunta. “Como?”, ele sorriu, “Por quê a pergunta, meu filho?”
“Eu e o papai, a gente ouviu uma música boa. Ele disse que o nome era rock, que era o melhor tipo de música e que ele o senhor gostam. Eu queria saber quem inventou, de onde é que veio. Aí ele disse pra perguntar pro senhor hoje, que o senhor ia me dizer algo muito legal”. Os olhos grandes encaravam sem reservas o avô, que encarava de volta, com um sorriso de satisfação.
“Ele disse, é?” O garoto olhava com curiosidade. “Certo. Vem cá, senta aqui”, e o velho bateu na perna direita. O garoto levantou e se acomodou com o avô. “Vou te contar a mesma história que eu contei pro seu pai quando ele era um pouco mais novo que você”. O menino era todo ouvidos.
“Primeiro, a história não é minha. É de um moço chamado Bon. Bon Scott, e dos amigos dele. Eles a contaram pela primeira vez faz muito tempo.”
“Quanto tempo?”
“Faz… Quase cem anos, acho”. O garoto arregalou os olhos. “Nossa! Quanto tempo. O senhor é velho assim, vô?” Sem se deixar surpreender pela sinceridade infantil, o velho sorriu. “Sou velho meu rapazinho, mas isso foi antes até do seu vô nascer”. O neto pareceu ainda mais impressionado, mas não disse nada. Limitou-se a esperar a continuação da história, mas antes que algo mais pudesse ser dito, uma estranha pulseira translúcida presa ao pulso esquerdo do menino acendeu e brilhou em tons vivos de azul, e ele começou a tocar no objeto de maneira natural, fazendo aparecer desenhos de formas variadas, que deslizavam sobre sua superfície lisa e imperturbável, sensível ao toque.
“Desligue isso”, disse o velho. O garoto obedeceu, passando o dedo pela lateral da pulseira, que imediatamente desligou. “Você não é muito novo pra ter essas coisas?”, perguntou o avô em tom de reprovação. “Papai me deu. Ele falou que é pro caso de acontecer alguma emergência, eu poder ligar pra ele”.
“Sei. Bem, você não quer ouvir a história?”
“Quero!”
“Então”, continuou o velho, se aprumando na poltrona e falando com um tom de respeito, “a história que o Bon contava é mais ou menos assim: No começo, muito tempo atrás, no ano de 1955, ninguém sabia o que era rock. Os homens brancos tinham um tipo de música, os negros tinham outra. Um dia, dois deles, um branco chamado Bill e um negro chamado Chuck, começaram a fazer algo diferente. Tinha outros também. Vendo tudo isso, um poder veio do céu, e disse ‘Que se faça o som’, e o som se fez. E disse ‘Que se faça a luz’, e a luz se fez. ‘Que se faça a bateria’, e a bateria se fez. ‘Que se faça a guitarra’. E, claro, a guitarra se fez. Aí ele disse, ‘Que se faça o rock’. E o rock se fez. E foi assim que aconteceu. O rock nasceu. E em toda a terra cada banda fez nascer uma tempestade.”
O velho gesticulava de maneira grandiosa, e os olhos ansiosos do menino ficavam cada vez maiores, impressionados.
“E aí, meu filho, o homem que tocava guitarra ficou famoso. O homem de negócios, o empresário, ficou rico com ele. Em todo lugar havia estrelas do rock, adorados, amados. Havia também milhões de pessoas aprendendo a tocar essa música nova, quinze milhões de dedos nas guitarras. Dava pra ouvir a música deles, e tudo que eles tinham pra dizer era ‘Que se faça o som, a bateria, a guitarra, que se faça o rock!’.”
O garoto estava atônito, impressionado pela performance do avô. Orgulhoso de si mesmo e do neto, o velho olhou para o menino e disse “E o resto, filho, é história”.
“Mas foi assim mesmo, vô?”
“É… mais ou menos como eu disse. Mas quer saber o mais interessante?” O garoto fez que sim com a cabeça, interessado.
“O Bon, aquele que eu te falei, ele contou essa história em uma música. A gente podia ouvir, que tal?”
“É!”, disse com ânimo o menino e, sem que fosse pedido, levantou e correu para a incólume parede a poucos metros da poltrona. “Ouvir música”, disse o garoto pausadamente, e como por mágica, a poucos centímetros sobre a parede e na metade do caminho entre o chão e o teto, materializou-se uma tela, como que feita de luz, onde se via o símbolo clássico de fones de ouvido.
“Não”, disse o velho, “aí não, rapaz, ali”, e caminhou devagar para o aparelho bruto e antigo parado no canto da sala. “Olha só isso”, disse ele, mostrando um objeto quadrado e fino, “isso é um CD”.
“Isso tudo?”, quis saber o menino.
“Não, não”, e o velho sorriu com a diferença de gerações entre ele o neto. “Isso é o CD”, disse ele enquanto abria o fino objeto e mostrava que dentro dele havia outro, ainda mais fino, perfeitamente redondo e com um pequeno buraco no meio. “Antigamente a música era colocada aqui”, explicou. O garoto pareceu confuso, mas balançou positivamente a cabeça. O avô então empurrou com o dedo uma pequena área mais alta no aparelho estranho e dele saiu um tipo de bandeja, que, pensou o menino, comeu o tal cê dê.
“Meu garoto”, disse o velho, segurando o menino pelos ombros, “eu podia contar um monte de histórias, mas o rock você só entende ouvindo, sabe. Por isso o Bon cantava essa música, e por isso que os amigos dele ajudavam. E eu quero que você ouça com atenção. Ah, e depois eu tenho muito mais coisa pra te contar e mostrar. Entendeu?”
O garoto concordou. O avô pressionou uma última vez uma das misteriosas elevações naquela rústica máquina de música, e um som forte, rápido e agressivo ecoou. Uma voz quase rouca soltava as palavras e o menino entendeu imediatamente que aquela era a voz de Bon. No início, ele se sentiu com um pouco de medo, agarrando a perna do avô de leve, como que para se proteger. Depois foi largando, se soltando. Em pouco tempo sentiu vontade de se mexer, de pular. O menino olhou para o CD, onde se via na capa a imagem de um lugar grande e iluminado, com pessoas felizes e agitadas nele. Entendeu que eles faziam aquela música. E compreendeu tudo.
Enquanto avô e neto ouviam a música e se entreolhavam com alegria, um homem alto, já pela casa dos quarenta anos, os observava da porta levemente aberta. E o homem sentiu orgulho de seu pai e seu filho. Com um sorriso carregado de memórias e com a voz levemente embargada, ele disse para si mesmo: “Que haja rock…”
E o rock se fez. Mais uma vez.
***
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