Salve, Salve, jovem Mestre
Era noite dum dia chuvoso na capital paulista quando, do apartamento no quinto andar ouvi-se um som diferente no andar de cima. Apenas três dias depois seria encontrado o corpo de Genivaldo Antunes Magalhães, fulminado por um derrame cerebral extenso. Mesmo que os moradores do andar abaixo houvessem chamado por uma ambulância não haveria chances de um resgate: Pereira Neves estava morto.
Não me lembro da primeira vez que li um livro do cara… Meus pais preferiram dar à mim e minha irmã os filmes da Disney ao invés de debates filosóficos em versos, e à bem da verdade provavelmente foi a opção correta. Ainda assim, quando comecei a me interessar pela leitura, o livro dele foi um dos primeiros que li… Não que eu tivesse entendido grandes coisas, mas gostei o suficiente para, uns anos mais tarde, pegar o livro de novo e descobrir que até que tinha coisa interessante na tal da poesia pós-moderna.
Claro que estou falando de Alcides Viaja, publicado pela primeira vez em 1983, e cuja segunda edição, com uma capa muito mais legal que a da primeira, eu tinha. Como meus pais acabaram com ele eu não sei, já que não é o tipo de coisa que nenhum dos dois se interessa, mas e daí? Até mesmo aquele presente comprado às pressas só pra não dizer que não deu nada pode ser uma boa escolha.
Desde aquela primeira vez, li o livro mais umas sete ou oito, e embora seja meio clichê dizer, a cada vez que li novas possibilidades se apresentaram, novos pontos de vista, muitos dos quais eu não compartilhava e ainda não compartilho. Não creio que se pode esperar nada diferente: Muita coisa mudou desde 1938. Nesse meio tempo, entre a Segunda Guerra, a Guerra da Coréia, do Vietnã, do Golfo, do Iraque e do Afeganistão, Pereira Neves não só foi uma voz ativa pelo pacifismo, mas também um constante crítico de movimentos sociais, principalmente os hippies e os carecas (skinheads)… É comum a comparação de sua cidade natal, Bom Jardim, em Pernambuco, com campos de algodão do sul dos EUA… Pra mim sempre foi uma questão de ser melhor que o Jorge Amado (Não que seja particularmente difícil).
Já mais velho então pude ir atrás do resto de sua obra, e dentre os mais de 70 títulos pra escolher devo ter lido uns 40: Uns perderam sua validade para os tempos atuais, outros o próprio autor veio a renegar, dizendo que “os tempos mudam e, felizmente, nós também”, mas a maior parte não só é contemporânea como também é, pros padrões de 2016, assustadoramente precisa. Pode-se falar o que quiser, mas estar com quase 80 anos nas costas e continuar procurando novas formas de ver o mundo passa longe de ser a norma. “Histórias Para Ler“, “Contos de Hum Pastor“, “Anna Madalena“, “Quintas“, a duologia da “Salvação“, “Sem sombra nem Sol“, “Uirapuru“, “Minha Mãe e seus Bordados“, “Sangue Nacional“, “Mantas e Caldeiras“, “Orobó“, “Cartas de Um País Perdido“, “Poemas Curtos e Outros Versos“, “O Lobo no Cercado“, “A Capital do Estado“, “Barnabé“, “Curral de Gente“, “Sem Pais“, “Noite de Verão“, “Como os padres pregam e os devotos pecam“, “Jenô“, “Por pouco, Amor“, “Cana Ouro“, “Menina dos Olhos Doces“, “Atropelados Pelo Mundo“, “O Deserto e a Fome“, “Doce de Laranja“, “A Morte De Dom Henrique E Como O Rei Se Salvou“, “Ovos de Ouro Não Compram Feijões“, “Irmã Letícia“… Vira e mexe eu me pergunto como não se fala de sua obra nas escolas, e aí eu lembro que o governo quer o povo burro e dócil se a gente já reclamava de Graciliano Ramos, Pereira Neves daria em atentado com bomba de fedor todo dia da semana.
Não é difícil pensar que, assim como Suassuna e Saramago, Pereira Neves tenha perdido no bolão da popularidade nos últimos anos: Sua obra é difícil e cansativa de ler, boa parte simplesmente não é mais relevante e, claro, é muito mais fácil ver vídeo no YouTube que ir em livraria. A teimosia do autor em não aceitar que sua obra fosse digitalizada definitivamente não foi uma boa jogada nessa história toda… Não que não se ache, mas, ironicamente, um livro impresso é mais acessível que um PDF dele. Pra falar a verdade, ler sua obra é um grande exercício de paciência, talvez um maior mesmo até do que de “conscientização, informação e ação”. Pago um bom preço por um livro do cara, mas nem todo dinheiro no mundo me faria morar com ele (Algo que, as ex-mulheres e os filhos definitivamente concordam).
No fim das contas, 2016 acabou também por levar um dos poucos autores que eu me dei ao trabalho de conhecer à fundo… Pereira Neves foi um dos grandes responsáveis por me permitir fazer a fatídica troca da adolescência para a “idade adulta”. Não que tenha sido uma experiência exatamente alegre, mas considerando que tem gente que jura que é impossível ter mais de vinte sem querer morrer, eu tô muito bem. É bem verdade que sua obra não é uma das minhas favoritas, mas foi (E, até certo ponto), ainda é, uma das mais úteis: Me mostrou que o mundo muda, que o modo como agimos em sociedade vai ajudar a determinar o mundo que nossos descendentes vão viver, e que, no final do dia, depois de ajeitar as cadeiras, varrer o chão e apagar as luzes, o trabalho continua. Eu sei que é bobo falando assim, mas quando você tem 15 anos e acha que o McDonald’s servir café da manhã é uma baita ideia, é diferente (Não que eu ache, tá? O café da manhã do McDonald’s sempre foi uma porcaria).
Não creio se pode ser dito que Pereira Neves mudou a literatura brasileira, talvez nem mesmo que seja um dos grandes autores do país, mas quando eu soube da sua morte, ficou claro para mim que o país está mudando, que o mundo está mudando e que eu preciso me esforçar para acompanhar isso. Foi quando a ficha caiu de verdade. Não é grandes merdas, mas como é de graça toma o conselho: Leia Pereira Neves. Mesmo que seja pra discordar, pra ficar puto por causa da morte dos patos ou pra reclamar da porcaria do hífen que ele usava a rodo. Leia Pereira Neves para, quem sabe, chegar aos 78 sem ser aquele tio chato que não sabe usar nada “dessas tecnologias de hoje” e que usa “no meu tempo” como se fosse vírgula. Leia Pereira Neves porque você também pode mudar.
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