Você um, eu um e um eles
Numa sala fechada, pequena, três. Parados, meio distantes, cada um em seu canto.
O de lá está olhando para baixo, voltado para baixo.
O dalí olha para cá e para lá, mas sem contato visual, só observa, calado, e pensa.
Daqui, eis a cena que se desenrola, silenciosa, parada, quieta.
As paredes são cinzas, não desbotado nem velho, mas cinza. O chão também é cinza, mas de pedra. Pedras grandes, de formatos quase geométricos, lisas. Não há teto. Ao menos não que se possa ver. Não por estar muito alto ou ser transparente, simplesmente não se sabe nada sobre ele.
O papel de espectador, às vezes, é o mais comum, ainda que, por definição, seja alguém que deveria interferir, mover-se. Olha-se, como se numa cena, de um filme, mas não como personagem. Espectador, em que os outros personagens continuam a atuação, ainda que, daqui, a fala não seja dita.
Não é uma questão de distância ou de clareza. Vê-se os outros, seus movimentos, suas expressões, ainda que não se saiba o que pensam. Cabeças de pedra da Ilha de Páscoa tem boca, mas não falam.
A sala é pequena, proximidade não é a questão. É o distanciamento. Talvez por necessidade, por influência, por afinidade, por diferença criativa. Pés de pedra da Ilha da Paixão não andam.
Não há a necessidade de olhar para outro lugar: A visão engloba tudo que há na sala. A sala, um daquí, um de lá e aqui. Só a parede, nas costas, não é vista, mas esta é igual às outras. E a cena se repete, ligeiramente diferente, mas igual, com as mesmas intenções. Talvez o de lá tenha se virado, só um pouco, para ver, de lá, o que os daqui faziam. Só talvez, já que, rapidamente voltou à rotina de olhar para os pés. O dalí, ao perceber o de lá, olha para cá, esperando uma troca de olhares: Uma pergunta muda, que não recebe resposta.
Não é a falta de som que atrapalha. Distância e olhares não faltam, mesmo rápidos, disfarçados, com medo e curiosidade. Daqui a regra ainda é a observação, quando, depois de ligeiras mudanças, tudo voltou ao mesmo estado anterior. Olha-se para baixo, para os pés, e consequentemente a visão passa pelas mãos. Pés OK, mãos OK. Fala OK, mesmo sem testá-la. O dalí? OK. O de lá? Também.
E daqui a dúvida, de deixar o posto, quebrar o protocolo. A missão é observar, mesmo que fosse necessário interpretar, falar, com posicionamento, timming. Hesita-se porque é fora do comum, extraordinário. Talvez até errado, ainda que preciso. Preciso e preciso, para acertar e para não errar. E, novamente, hesita-se. Para voltar a observar e ver se dalí não estão olhando, e o mesmo de lá. Por vergonha, talvez, mas talvez para não ter testemunhas.
Dá-se o passo, e a cena se altera. Primeiro dalí, que é mais perto, e depois de lá, que mesmo de longe nota a mudança. De lá e dalí se olham, também em dúvida, e olham, juntos, em seguida, para cá. Não há mais a parede oposta, nem o chão. Não há, igual não havia o teto antes. Depois, a parede do lado se vai, porque a do outro lado já tinha ido. Não se olha para trás, a parede é igual às outras.
E a cena para, como um filme que acaba no meio, com a última cena ainda sendo exibida. O passo de cá, mudando as coisas, de lá a dúvida, aliada à dúvida dalí. A sala ainda é pequena, do mesmo tamanho que era, mas agora não tem paredes cinzas, chão de pedra e continua não tendo teto. Ainda se vê as mesmas coisas: A não parede do fundo, as não paredes das laterais e os outros dois. Ainda não se vê a não parede de trás.
O de lá, na cena parada, olha cara cá, assustado. O dalí também olha para cá, mas com curiosidade. A regra era a observação, numa cena em que os personagens não tinham falas, mas encenavam normalmente, como se as falas fossem faladas nos locais certos, nos momentos certos. A cena, a mesma cena, continua parada. Mas esbranquece, aos poucos, partindo do meio e dos cantos, até tomar, quase que totalmente a tela. E para, antes de todo branco, deixando, com algum esforço, antigos fantasmas, que dão apenas uma ligeira ideia da cena que era.
O de lá, que antes olhava para cá apenas com a cabeça virada, agora se vira de frente para cá. O dalí entra melhor no campo de visão, também virado para cá, e de cá olha-se para os outros dois, com um questionamento, outra dúvida, aliada à dúvida antiga, mas agora já foi, e deve-se seguir, com ou sem dúvida. De lá e de cá, também sem certeza, estão dentro. Estão, todos, na mesma cena, na mesma sala.
E a cena termina. Outra deve começar, diferente, nova, mas ainda sim uma continuação. A cena antiga acaba, mas não é esquecida. De lá, de cá e dalí, a cena permanece, passada, morta, imutável, mas permanece, pelo bem da nova cena. A nova cena irá enbranquecer, mas é assim que cenas terminam, e é do mesmo branco, dos mesmos quase difusos fantasmas, que novas cenas começam.
Você um, eu um e um eles, na nova cena, esperando por um novo branco. Na nova cena há uma nova regra, papéis podem se inverter, locais também. Você vai para lá, eles vem para cá, e eu vou para alí. O branco se dissipa: Está perto, agora. No ar em 3… 2… 1.
Sempre resisti à escrever um conto para este blog… Estava ouvindo música que não gosto, desculpem.
Leia mais em: Conto